Iniciamos o mês missionário, cujo valor, encontra-se na celebração da Eucaristia, alimento e referencial motivador para toda boa obra. Ao mesmo tempo, celebramos a memória de Santa Teresinha do Menino Jesus, que de seu mosteiro, rezou por toda a Igreja, na sua ação missionária.
Desse modo, podemos compreender dois elementos fundamentais da ação missionária da Igreja. Primeiro, missão é a responsabilidade de toda pessoa batizada. Por isso dizemos: “batizados e enviados”. Quando fomos batizados assumimos a condição do próprio Jesus de, além de inseridos em sua Igreja-Corpo-Família, recebemos o mandato de sermos suas testemunhas: “Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho a toda criatura” (Mc 14, 15). Este “Ide” se faz pela ação do Espírito Santo que move e harmoniza todas as coisas. Assim como o Pai enviou seu Filho, é o mesmo Filho quem nos envia.
A missão não se faz de grandes obras, mas das pequenas, por exemplo, na partilha do pão, na oração, na transmissão da Palavra de Deus e de uma visita simples que se faz a um desconhecido ou a um amigo. Até porque, o estar presente na vida de alguém já é missão. Assim, missão se faz na parceria de toda a comunidade, porque todos somos missionários: da criança à pessoa idosa. Por isso o Papa Francisco pede uma Igreja em saída, que saia de si mesma para ir ao encontro do outro, que muitas vezes encontra-se nas periferias existenciais, esquecido por nós! Assim, é urgente “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, nº 20). É necessário irradiar a Alegria do Evangelho, proposta de Jesus e que se fundamenta na própria experiência com Ele (cf. AG, nº 24).
Desse modo, é fundamental que toda celebração Eucarística nos habilite para vivermos a missão e na missão. A Eucaristia não é meio, pois tem fim em si mesma, é o Mistério Pascal de Cristo – porém é experimentada como conteúdo originador de toda ação missionária (Bento XVI). Com isso compreendemos que, alimentados por Jesus Cristo, a própria Eucaristia, Ele mesmo nos provoca, confrontando-nos com o seu anúncio.
A missão é de todos os sacerdotes, juntamente com seu bispo, em primeiro lugar. Porém, sendo eles motivadores e organizadores da ação missionária, cabe à toda a Igreja, Corpo de Cristo, agir para um objetivo comum, a salvação de todos (cf. AG, nº 36). Se fazemos parte da Igreja, então somos missionários na essência do ser cristão. É preciso, com isso, assumir esta consciência (cf. CIC, cc. 781-782). Desse modo estaremos vivendo a premissa do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), que diz: a Igreja é “Sacramento universal de Salvação” (LG, nº 48).
Por onde cada pessoa cristã se fizer presente, aí também estará a expressão do ser igreja. Missão não é proselitismo, mas abertura de si no encontro com o outro, diferente no pensar e no agir. Missão é a apresentação alegre de Cristo Jesus como fonte de toda a vida. E é a partir d’Ele que seremos suas testemunhas (Lc, 24, 48; At 1, 8). E mais: “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5, 13-14). A ação missionária, assumida com responsabilidade e consciência, desenvolve-se dentro e fora das estruturas da Igreja Católica – missão ad intra e ad extra. O ser missionário se vive a qualquer momento e circunstância. Porém, o mês missionário é para, tão somente, realçar essa beleza do cristianismo católico: o de sermos instrumentos da Verdade, que é o próprio Cristo Jesus! (3 Jo 8).
Portanto, a pergunta a seguir é fundamental: Estamos dispostos para a missão de ser igreja e a partir da Igreja? – Se estivermos neste espírito, o da missão, então seremos capazes de dialogarmos com o diferente, de escutarmos o estrangeiro, de partilharmos a vida e os bens, de comunicarmos o que é belo, justo, bom e verdadeiro, dentre outras práticas libertadoras (cf. Documentos da CNBB-105, p. 91).
Porque a vida em si mesma é uma constante missão!
Diácono Valmir Rodrigues Pereira.
(Arquidiocese de Diamantina-MG)
Licenciado em Filosofia (ICSH)
Bacharel em Teologia (SASCJ)
Esp. em Docência do Ensino Básico e Superior (F.E.)
Pós-graduando em Psicopedagogia (I.C.)
O que tem acontecido com os nascidos entre 1981 e 2010?
*Elaine Ribeiro
A depressão é um tema de preocupação mundial, uma vez que tem sido considerada a doença que mais gera afastamento do trabalho, e tem alcançado, mais intensamente, uma faixa etária da população que nos chama a atenção: nascidos entre 1981 a 2010. São pessoas que hoje têm entre 12 e 41 anos, fase que engloba adolescentes, jovens e adultos em suas fases mais produtivas, tanto em período escolar, quanto profissional, de expressivo desenvolvimento humano.
As queixas apresentadas por eles trazem situações como: “a vida não tem sentido; não tenho mais vontade de fazer nada; nada me agrada; as roupas não ficam bem em mim; preciso fazer muitas coisas, ou ainda, ter muitos estímulos para ter vontade de algo.” Mas, elas não param por aí: há um questionamento constante sobre a felicidade e o que fazer para alcançá-la, e uma dificuldade para compreender o sentido do sacrifício, das recusas e entregas pelo outro.
Sim, essa é, infelizmente, a realidade que se apresenta neste momento, uma vez que a busca por acompanhamento psicológico e psiquiátrico tem aumentado na mesma proporção das crises de ansiedade, depressão e índices preocupantes de suicídio.
Muitos jovens procuram a psicoterapia, pois estão cientes do que se passa com eles: estou deprimido, tive crises, surtei, pirei, não aguento mais, a vida é pesada demais, para quê estou estudando. Muitos questionam o para quê esforçar-se nos estudos, por exemplo. Há um desejo de sucesso financeiro rápido, imediato, com baixo esforço ou estudo. Aquilo que para outras gerações era a consequência natural do crescimento e amadurecimento, ou seja, assumir responsabilidades, fazer algo pelo outro, ter pequenos sacrifícios, sofrer em certo grau para obter algo, parece ser intolerável para essa geração. Tanto que ela tem sido nomeada como uma “geração infeliz”.
Claro que não temos uma totalidade assim, mas são esses números expressivos que nos preocupam. Alguns aspectos podem intensificar esse quadro, dentre eles a pandemia da Covid-19, que deixou muitos jovens e adultos em casa, reclusos, fixados às redes sociais e, com isto, deixando de usar o que chamamos de habilidades sociais e emocionais, que passam pelo relacionar-se com o outro, pensar as consequências dos seus atos, agradecer, colocar-se no lugar do outro.
Há um isolamento que parece, por muitas vezes, ignorar a existência do outro no mundo, o que leva-os a ter maior dificuldade de perceber que a vida é feita para o outro, na relação com o outro, e não de uma forma autocentrada e egoísta, que gera as principais crises existenciais.
Os perfis de rede social têm sido potencializadores de uma falta de senso crítico e uma visão extremamente limitada do mundo. E o que se vê é uma busca constante por influenciadores como fonte de relacionamento, formação de opinião e discernimento, o que está longe de ser uma forma segura e eficaz de estruturação do conhecimento.
A tristeza por si só é uma emoção normal ao ser humano, seja por uma perda, uma dificuldade, adoecimento, transição de vida. Mas, quando se estende por meses, altera a disposição, a vontade, o interesse pelas coisas, a concentração e a qualidade de vida de forma geral, pensamos sim, num quadro depressivo. E parte dos diagnósticos se dá porque a informação sobre doenças emocionais está mais divulgada.
Um julgamento popular que apenas diz: “na minha época não era assim”, ou, “isso é falta de ocupação”, não resolve o problema. Temos um novo tempo, uma nova realidade, um outro cenário. Para jovens e adultos que têm coragem de identificar o problema precisamos ter a receptividade, compreensão, além de fazermos com que cada vez mais essa realidade possa ser tratada em rodas de conversa nas escolas, nas empresas, em casa, na família, nas igrejas e nas próprias redes sociais.
* Elaine Ribeiro é psicóloga clínica e organizacional da Fundação João Paulo II / Canção Nova.
Instagram: @elaineribeiro_psicologa
Site: elaineribeiropsicologia.com.br
“…Somente a misericórdia nos serve de companheira…”
Reflexão sobre a misericórdia e a vida eterna, o desprendimento das riquezas e o horizonte da eternidade, escrito por Santo Ambrósio (séc. IV), Bispo e Doutor da Igreja, a partir da passagem do Evangelho de Lucas (Lc 12,13-21).
“Já que todas as coisas que são do mundo permanecem nele, e nos abandona tudo aquilo que entesouramos para os nossos herdeiros; e, na realidade, deixar de ser nossas todas essas coisas que não podemos levar conosco.
Somente a virtude acompanha aos falecidos, somente a misericórdia nos serve de companheira, essa misericórdia que atua em nossa vida como norte e guia até as mansões celestiais, e busca conseguir para os falecidos, em troca do desprezível dinheiro, os tabernáculos eternos”. (Lecionário Patrístico Dominical – 2013 – Editora Vozes – p.686)
Quando a morte de alguém que amamos acontece, sentimo-nos impotentes, tristes e com sentimentos de que esta tristeza será para sempre. Nada tem mais sentido, beleza, luminosidade.
Parece-nos terem roubando nosso chão e, como pássaros com as asas quebradas, não temos como voar, e mesmo que asas ainda tivéssemos, não conseguiríamos alçar voo.
Bem afirmou Santo Ambrósio: “somente a misericórdia nos serve de companheira” rumo à eternidade. De fato, exortados pelo Papa Francisco, na Bula da “Misericordiae Vultus”, vivamos as obras de misericórdia corporais e espirituais.
Nada levaremos, quando desta vida partirmos, a não ser a misericórdia vivida, que nos acompanhará para na passagem definitiva: nem dinheiro, nenhum bem, nem título, nem glória humana alguma alcançada, absolutamente nada que se possa tocar.
Sendo assim, que não sejamos tardios, morosos e jamais adiemos qualquer ação misericordiosa em favor de nossos irmãos.
Quantas vezes nos apegamos aos bens como se fossem capazes de nos eternizar e nos garantir a felicidade plena eterna. Ledo engano, no qual não podemos incorrer, sobretudo se professamos a fé no Deus que nos ama e quer que tão apenas usemos os bens que passam e abracemos os que não passam; aqueles que não se pode tocar, mas nos permitem tocar, um dia, o chão da eternidade, na glória da imortalidade.
Lá nada precisaremos. Aqui, por vezes, nos consumimos e nos devoramos com ambições desmedidas, cobiças que geram fome, miséria e tantos sofrimentos.
Que jamais nos enganemos com falsas ilusões de felicidade e eternidade: a salvação somente nos vem de Deus e na prática da misericórdia que nos acompanha até o último suspiro no tempo presente, para se prolongar na eternidade.
Dom Otacilio Ferreira de Lacerda,
Bispo de Guanhães
Andamos de um lado para o outro, resolvendo problemas, respondendo mensagens, assistindo um vídeo importante, comprando algum produto urgente, enfim, ocupados com várias coisas que se apresentam diante de uma tela.
O mundo hoje cabe na palma de nossas mãos e tudo isso fascina qualquer um, seja uma criança de um ano ou um idoso, de 70 anos. E, se perguntarmos a uma pessoa porquê fica tanto tempo no celular, ela sempre terá uma resposta que justifique e “convença”.
E assim, alterações neuroquímicas vão surgindo no cérebro humano, com uma nova “droga”, mas, agora, lícita, e que vem, muitas vezes, disfarçada de trabalho ou conhecimento, de informação. E para não ficar para trás, fica-se atrás de um objeto que escraviza. E aqui está o problema.
É comum querermos proteger e privar crianças e adolescentes do uso constante do celular, impor regras para o manuseio e acesso a este tipo de tecnologia. E essa atitude não está errada, pois tais estímulos têm sido como uma bomba para a estrutura cerebral deles; e já têm revelado os seus efeitos nocivos a longo prazo. Mas a questão é o quanto os adultos, responsáveis por essas crianças e adolescentes, não conseguem se desconectar da internet, sempre com o discurso de que é necessário para o trabalho, estudo, quando na verdade se gasta boa parte do tempo nas mídias sociais e afins.
É preciso lembrar que o primeiro comportamento da criança é o imitativo, ou seja, ela reproduz o ato, sem saber exatamente o que significa, e o faz por pura e exclusiva imitação. Sendo assim, seria interessante olhar com muita franqueza o comportamento da família com a tecnologia e, posteriormente, fazer uma análise de quanto as crianças o reproduzem em seu próprio comportamento. Se for honesto, encontrará muito de você neles. Até mesmo o “vício” pela tecnologia, especificamente pelo uso do celular, ficará explícito.
Quanto tempo você consegue ficar sem olhar o celular? Um minuto, dez, trinta? Duas horas? Um período completo, seja manhã, tarde ou noite? E ao acessar, o que tem buscado?
Lembre-se, quando existe o desejo de introduzir bons hábitos familiares e excluir os maus, é o comportamento da família que precisa mudar. É importante reconhecermos nossos limites. Pois é a partir do autoconhecimento que o autodomínio vem, e assim, novos comportamentos são introduzidos, para novos hábitos se firmarem. Não adianta cobrar do outro e não ser exemplo. Mude você primeiro e promova essa mudança coletiva. Você verá que sua ansiedade diminuirá, sua criatividade e memória irão melhorar e enxergará a vida de uma forma que há tempos não via.
*Aline Rodrigues é psicóloga, especialista em saúde mental, e missionária da Comunidade Canção Nova. Atua com Terapia Cognitiva Comportamental; no campo acadêmico, clínico e empresarial.
*Por Alvim Aran
Um tema muito caro para o Papa Francisco é “Uma igreja em saída” que vai ao encontro dos fiéis, principalmente dos mais excluídos (Evangelii Gaudium, Cap I, noº 48), que procure estar presente na vida das pessoas e que não seja uma subcultura dentro de nossa sociedade. O que queremos dizer com subcultura? Por que a igreja se tornaria uma subcultura dentro da sociedade? Partindo dessas duas perguntas, após breve reflexão, pretendemos mostrar uma visão de Igreja partindo de Jesus Cristo e o esvaziamento de sua condição divina assumindo a condição humana.
Paulo, na carta aos Filipenses, mostra de maneira clara um Deus que se faz carne, que assume a condição humana e vem ao encontro daqueles que necessitam (Filipenses 2, 1 – 11), assim como no cap I do evangelho escrito por João (Jo 1, 14). A Igreja que Francisco busca é exatamente essa, uma Igreja que não fica presa em si mesma, mas se abre ao outro e assume a história humana (realidade material-histórica) assim como Jesus fez. Mas para isso é preciso sair das sacristias, de outra forma, é preciso assumir a posição missionária que é a atitude da Igreja por excelência.
Essa missão assumida por todos os batizados e batizadas coloca novamente a Igreja no mundo, na cultura popular e faz com que essa deixe de ser uma subcultura. Com subcultura queremos dizer que a Igreja está fechada em si mesma, não participa da vida concreta do povo de Deus em sua realidade histórica. De outra forma, as pessoas que participam da igreja (mais ativos) são um grupo seleto formado por aqueles e aquelas que estão mais próximos das pastorais.
Sabemos pelas realidades de nossas comunidades que a maioria das pessoas não são procuradas pela Igreja, são elas que procuram o templo ou a paróquia. Temos uma Igreja paroquial centrada na matriz de determinada cidade. E por experiência dizemos que os bairros mais afastados da matriz e da “paróquia” não tem assistência da Igreja, e com isso vemos o aumento das igrejas neopentecostais.
Esse afastamento da Igreja parte do clero, não de todos, mas da maioria acomodada que quer um povo que vai até a Igreja, mas não quer que a Igreja vá até o povo, e também das pessoas que acham no tradicionalismo uma forma de barca segura contra o avanço do mundo, são acostumados com uma Igreja de portas fechada para novas experiências. O novo nos assusta, não nos deixa andar para frente, pois é mais fácil ficar preso a movimentos ultrapassados do que se abrir a novidades.
Com esse movimento antiquado, ao invés de irem enfrentar o mundo, ficam esperando, fazendo uma analogia, a ovelha vir até o pastor e não o contrário. Sendo assim, a Igreja se torna subcultura, um grupo isolado, pois não são todos e todas que procuram ir ao templo e viver a radicalidade de Cristo, ou seja, a Igreja não participa do todo da comunidade, mas apenas de uma parte seleta.
Jesus não foi isolado do mundo, antes se fez presente em nossa realidade “assumindo em tudo a condição humana” (Filipenses 2, 1 – 11). Assim também a Igreja deve ser em tudo igual Jesus, não ficar presa em si, mas ir ao encontro daqueles e daquelas que precisam de ajuda e assumir a causa da libertação do povo de Deus.
Por isso a Igreja em saída é um termo caro para o Papa Francisco, não se pode evangelizar presos em sacristias, casas paroquiais ou templos chiques e caros. É preciso colocar o pé na lama, tirar os sapatos e ir pregar a boa nova anunciada por Jesus. Fazer igual aos primeiros discípulos do Caminho (Como os primeiros cristãos eram chamados), ir ao encontro das pessoas e não esperar as pessoas vir até os cristãos.
São Carlos de Foucauld, nosso irmão universal, rogai por nós.
SOFRER COM O OUTRO
Reflexão para o Momento Mariano dos seminaristas de Diamantina
“Sejamos sensíveis ao sofrimento do próximo!”
Pelo sinal…
Caríssimos Irmãos,
Após o anúncio do arcanjo, Maria se depara com um mistério que estava muito além de sua compreensão. Entretanto, embora não compreendendo, ela foi capaz de crer e confiar na graça operante de Deus. E é esta mesma capacidade que a impulsiona a fazer de sua vida a de seu filho, estando sempre ao seu lado em diversas circunstâncias. E isso foi vivido de maneira tão radical que nos últimos instantes de vida do Senhor, lá estava ela, caminhando com ele até o calvário, culminando com ela de pé, aos pés da cruz.
Como Mãe da Igreja, Maria é modelo dos que foram incorporados a Cristo pelo batismo. Ao sermos chamados pelo nome, o Divino Mestre nos convida a vivermos em função dele, assim como fez sua mãe, de forma irrestrita, especialmente na pessoa do irmão. E se queremos abraçar verdadeiramente a vocação sacerdotal, não podemos perder de vista este ponto: enxergar no outro o mesmo Cristo que um dia falou ao nosso coração como falou a Mateus: “Segue-me!”.
Mediante isso, assim como Maria não se manteve indiferente ao sofrimento de seu filho, assim também a dor de nosso próximo não nos pode parecer trivial. Em hipótese alguma a fome, a corrupção, a violência e tantos outros males que reduzem a dignidade do homem nos devem parecer alheias. Parece até um pleonasmo, mas deve doer em nosso coração a dor de nossos irmãos da mesma forma que no coração de Maria foi sentida a morte de Jesus.
Num mundo tão egoísta e insensível como o nosso, dominado pelo individualismo e pelo utilitarismo, corremos o grave risco de fecharmos os nossos olhos para a realidade ou até mesmo nos acostumarmos com o mal. Isso nos deixa mornos no amor e nos arranca da realidade, nos conduzindo para um mundo abstrato em nossas mentes onde isso tudo parece distante de nós, mesmo estando tão perto.
O amor de Maria por seu Filho é a expressão mais palpável do amor materno com que Deus nos ama, por isso supera e significa o sofrimento. É com este mesmo amor que devemos alimentar em nossos corações, um amor inquieto, um amor que não tolera a injustiça, que nos leva a agir com misericórdia. É necessário uma cultura do compromisso e da disponibilidade para assim combatermos a cultura do indiferentismo. Guardemos em nosso coração: Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus, a indiferença nos desfigura, pois nos opõe ao seu amor.
Diante da cena do calvário, nos deparamos com diversos tipos de pessoas: curiosos, zombadores e blasfemadores. Estes também se fazem presentes nos nossos dias. Quantas pessoas, que diante do sofrimento do próximo apenas se achega, curiosamente, recolhe informações e se vai? Quantas não são as pessoas que fazem da dor motivo de piada e mais quantas que, julgando-se sinônimos de perfeição, acham-se no direito de serem juízes do outro, de ofender a sacralidade da pessoa por ela estar em uma determinada situação? Eis que a trave da ignorância lhes impede de ver o Cristo crucificado diante delas.
Entretanto, neste cenário de pura maldade que havia no momento da crucificação, lá estava Maria. Eis a chama do amor que crepita em meio ao mal. Assim, também, somos nós convidados a sermos sinais de amor diante do mal e do sofrimento; a sermos luz em meio à escuridão, por mais que as sombras parecem ser mais fortes.
Quando observamos o avanço das trevas, corremos o perigo de perdermos a fé e a esperança da vinda de dias melhores. Aqui também nos fazemos alunos na escola de Maria, mulher que creu e confiou quando tantos não fizeram. Em seu coração, transpassado pela espada de dor, estava acesa a chama da fé. Ela não se conformava que Deus deixaria acabar ali a obra começada.
Assim devemos ser, caríssimos: por mais que pareça difícil, devemos manter viva em nós a chama da fé, para que ela nos guie em meio às sombras. Devemos nos inquietar com as injustiças e com as mazelas deste mundo e confiar na ação de Deus. Ação para a qual quis Ele contar conosco, na disposição de servi-lo com generosidade de coração para juntos ‘fazer acontecer aqui o Seu Reino’.
Ó Maria, ajudai-nos a sermos compassivos diante das necessidades do nosso próximo. Que não sejamos indiferentes às suas dores e necessidades, mas que sejamos movidos pela mesma compaixão que sentistes ao acompanhar os últimos instantes de vida de nosso Senhor Jesus Cristo. Que sejamos sensíveis ao sofrimento do próximo. Amém.
Sílvio Souza Gomes,
seminarista
“E como o ciclo natural de tudo o que é existente, o mundo também vai virar pó. Pode ser daqui a algumas décadas ou bilhões de anos, ou, para ser mais preciso, pode ser hoje mesmo. Mas pouco me importa. Não sobrará ninguém para dizer que eu estava certo. Tenho a convicção de que não será como um dilúvio, a explosão do sol, ou algo parecido. Nós mesmos vamos dar fim a isto tudo. Depois da bomba atômica e da pandemia só fiquei em dúvida se não seria muito em breve”
Parece absurdo que quase ao término da teologia se faça uma declaração como estas: o que ainda não foi dito sobre Deus? Diante de uma chuva de informações a qual somos bombardeados torna-se evidente que nutrir uma experiência profunda de Deus é a melhor vacina contra as imagens equivocadas que se propagam por aí, sobretudo a de que Deus seja favorável a guerra. Por isto quis iniciar com esse relato apocalíptico, no sentido mais estrito do termo, afim de revelar que nos períodos de maiores incertezas da humanidade sempre emergiram profetas do caos e literatura deste tipo. Quantos não vociferam calúnias contra Deus a despeito dos males que se abatem sobre nós? Pandemia, conflito entre países, afinal, de quem é a culpa?
Esta é a pergunta que paira no existencial da história humana, a contar pela narrativa de Adão e Eva que personifica a ação impensada de muitos, que ao invés de solucionar crises, superar conflitos, procuram responsabilizar terceiros sem devido exame de consciência. Assim, a guerra em última análise não passa de uma escolha equivocada, porque fere aquele princípio, segundo o qual, fomos criados para viver em harmonia. Nunca é demais, portanto, dizer daquilo que é uma convicção fundamental de nossa fé: o amor de Deus ultrapassa nosso entendimento. Claro, isso não significa nem justifica procrastinação epistemológica. Muito pelo contrário, o desejo de Deus permanece latente em nós e exige, por sua própria força, uma experiência pessoal a partir da qual comprometer-se com a vida do irmão torna-se um desafio que supera todo e qualquer conflito. É este imperativo que determina as relações humanas em seus mais distintos níveis de experiência. E que o papa conclama naquelas palavras: a unidade prevalece sobre o conflito.
Então, é inadmissível que o amor dê lugar ao ódio, que o Reino de Deus seja sucateado pela tirania da violência e que se busque respaldo bíblico para justificar o sofrimento. Talvez nas atuais circunstâncias a que chegamos haja motivos muitos para a suspeita de que estamos nos fins dos tempos. Mas nunca o de se esperar que a ruína de um povo, uma nação ou um país seja desejável aos olhos de Deus. E se teu juízo a despeito deste fato seja contrário, não falamos do mesmo Deus.
Enfim, só quem faz uma experiência além do que é dito pode compreender quem Deus é, porque se você sabe apenas o que te disseram sobre Deus, talvez ainda não O tenha conhecido!
Por Gabriel Ferreira Oliveira,
seminarista
A música do Padre Zezinho, cuja letra intitula esse texto, revela algo profundo: o verdadeiro discípulo e missionário não evangeliza a partir de suas próprias forças, pois não é seu merecedor; a missão é de Deus.
Fazer parte da vinha, portando um chamado específico não significa pertencer a um estado superior aos demais membros de uma comunidade. Pelo contrário, é serviço constante que favorece a concretização do sonho de Jesus Cristo: todos sejam um (cf. Jo 17, 21). Isso só será possível segundo a intimidade com o Espírito Santo, cuja ação é misteriosa e surpreendente. Nesse sentido, é perceptível que a vocação do missionário não nasce de si mesmo, mas é um dom ofertado gratuitamente por Deus. Cabe ao evangelizador escutar, discernir e se prontificar.
Escutar o Senhor que chama é sentir a mesma convocação feita ao povo de Israel: “escuta Israel! O Senhor é nosso Deus, o Senhor é um. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua força” (cf. Dt 6, 4-5). O convite feito a Israel é o mesmo que se estende a todos quantos se sentem interpelados pelo anúncio do Reino que, aliás, é para todos. A responsabilidade que nasce do sim dado a Deus será renovada no mesmo altar que ocorreu o chamado, porém, não realizada apenas com sacrifícios (Hb), mas com louvor e ação de graças, porque a vida totalmente ofertada é agradável aos olhos do Senhor.
Discernir o chamado só será possível na intimidade com o Senhor. É por isso que o Deus de Jesus Cristo, o mesmo Senhor e guia de Israel, nunca enviou alguém sem antes convocá-lo à intimidade, pois o missionário não se pertence (Sl 100 (99), 3). Ora! Os doze só são enviados depois de terem com o mestre uma relação de entrega e aprendizado: chamou-os pelo nome, tirando-os dos corriqueiros afazeres (Mt 4, 18-22) para introduzi-los na missão divina cujo centro é a própria Trindade. Quando perguntam ao mestre onde mora, a resposta de Jesus é o indicativo que não se anunciará aos povos outra morada senão aquela que Ele mesmo indicar, por isso exorta: “vinde e vereis” (Jo 1, 39). Assim, o missionário será sempre interpelado a experimentar acolhida nesse lugar, nessa missão sustentada por Deus mesmo.
Depois de se sentir acolhido, ouvindo Aquele que chama, o missionário se perceberá interpelado a discernir a proposta no encontro pessoal com Jesus. Feito isso, poderá responder, colocando-se em prontidão como discípulo e missionário do Evangelho que cura, mas compromete; liberta e novamente inquieta numa tensão cotidiana cujo desejo central é o de ver aquele filho de Deus, sem vez e sem voz, libertado de suas amarras. Contudo, isso não é mérito do missionário, do ministro ou do dirigente da comunidade, pois é a ação do próprio Deus que antes de enviar o missionário, já está presente em todas e quaisquer localidades, denominadas terras de missão. É puro dom e graça! Cabe ao servidor continuar sua missão sem esperar alguma recompensa que lhe afague a vaidade sem desanimar. Porque aquele que chama é fiel e sustenta sempre (1 Ts 5, 24).
Mesmo em meio a esse tripé, pode-se ter algum cristão que ainda maldiga todas as iniciativas em prol do ardor missionário em sua localidade concreta. Entretanto, é importante observar se aquele que se dispõe e está no caminho, colabora com os projetos e sonhos, ajudando a sanar as dúvidas para juntos vencerem as dificuldades que toda a vinha do Senhor apresenta, porque a “missão da Igreja ainda está no começo” como afirma João Paulo II na sua carta encíclica, Redemptoris missio (n.2). E sendo assim, a comunidade evangelizadora ainda é carente de homens e mulheres engajados e que comunguem do mesmo objetivo: levar o evangelho aos que se encontram no cotidiano, mas também àqueles que estão noutros cantos (Mt 28, 19s). Seria bom cantar testemunhando com a vida — “é missão de todos nós, Deus chama, eu quero ouvir sua voz” (música de Zé Vicente)!
Partindo da intrigante verdade cantada por Padre Zezinho, o missionário é chamado por livre iniciativa de Deus, por isso não mereceria ser divulgador do céu. Nesse sentido, o evangelizador não tem méritos frente ao serviço que presta, mas a responsabilidade de anunciar o Evangelho sem reservar-se à vaidade, frisando por vezes os fracassos das iniciativas missionárias. O que se encontra de estabelecido e edificado na missão é fruto da graça sempre operante, mas também do esforço e colaboração de quem verdadeiramente ouviu e quis discernir, comprometendo-se com o convite que lhe foi feito. Cabe, portanto, ao findar o mês tematicamente missionário, um exame de consciência (mea maxima culpa) a todos os missionários, observando se de fato o amor de Deus foi testemunhado, porque diante do que se viu e ouviu não se poderá ficar calado (At 4, 20).
Filipe Ferreira Coelho, 4º ano de Teologia.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB. 2ª ed. 2019.
PADRE ZEZINHO. Cantiga de Sacerdote. Disponível em: <Padre Zezinho, scj – Cantiga de sacerdote – YouTube> acesso em: 24 Out. 2021.
PAPA JOÃO PAULO II. Redemptoris Missio: sobre a validade permanente do mandato missionário. Disponível em: <Redemptoris Missio (7 de dezembro de 1990) | João Paulo II (vatican.va)> acesso em: 24 Out. 2021.
ZÉ VICENTE. Missão de todos nós. Álbum: Nas horas de Deus amém. Disponível em: <Zé Vicente Ft. Dalva Tenório – Missão de todos nós – YouTube> acesso em: 24 Out. 2021.
A vinculação de Maria com o mistério de Cristo leva a teologia a explicitar cada vez mais o importante papel da Virgem Mãe na história da Salvação. Ensina São Luís Grignion de Montfort que Deus quis servir-Se de Maria na Encarnação como o mais perfeito meio para o Verbo vir até nós e operar a Redenção. Esta vinculação de Maria com todo o mistério de Cristo – o mistério de seu ser e de sua missão – levou a teologia a explicitar cada vez mais a persuasão de que a Virgem Mãe ocupa um lugar importantíssimo na história da Salvação. E por esta razão a Igreja A coloca numa posição de superioridade com relação a todos os Santos, prestando-Lhe o culto de hiperdulia. Em inteira consonância com o ensinamento dos Papas e dos Doutores, cantam os fiéis na Espanha e na Hispano-América um hino muito antigo, nascido da piedade popular, cujo estribilho diz: “Maior que Vós, só Deus, só Deus…
Nesse artigo abaixo, relembramos a pessoa de Maria como grande colaboradora com o mistério da salvação e pelo fato de várias paróquias de nossa diocese celebrar Nossa Senhora nesse mês de agosto, tendo referencia maior, o dogma da Assunção celebrado no dia 15. segue os inúmeros títulos celebrados em nossa diocese: Nossa Senhora da Pena (Rio Vermelho), Nossa Senhora Mãe dos Homens (Materlândia), Nossa Senhora do Rosário (Sabinópolis), Nossa Senhora do Patrocínio (Virginópolis), Nossa Senhora do Amparo (Braúnas), Santa Maria Eterna (Santa Maria do Suaçuí) Nossa Senhora do Pilar (Morro do Pilar), Nossa Senhora do Porto (Senhora do Porto) e Nossa Senhora da “Glória ou Assunção” (Divinolândia de Minas). Nessa oportunidade de celebrar Maria, transpomos abaixo esse belo artigo do Frei Jonas, na Revista Pastoral.
Boa leitura!
Maria de Nazaré: aspectos bíblicos, eclesiais e devocionais
São incontáveis as vozes que diariamente dizem “Ave, Maria!”. Saudando a Mãe de Jesus, cada uma delas traz presentes as Sagradas Escrituras, por meio das palavras do anjo (cf. Lc 1,28) e de Isabel (cf. Lc 1,42), como também traz o senso eclesial do papel materno-messiânico de Maria e um pedido pela sua contínua intercessão pelo povo de Deus em peregrinação. Tudo isso numa singela oração, uma das primeiras que aprendemos, a qual, não obstante sua simplicidade, apresenta a Virgem Maria em seus aspectos mais fundamentais.
Esses aspectos fundamentais, que nos dão a conhecer a Mãe de Jesus, devem estar bem unidos uns aos outros. Parece desnecessário dizer isso, mas existe o perigo de que “um falso exagero, como também de [uma] demasiada pequenez de espírito” (LG 67) venham a dividir a Virgem em “três Marias”, ou seja, a Maria encontrada nos evangelhos, a que encontramos nas definições dogmáticas e nas elaborações teológicas e, por último, a Maria venerada pela piedade popular (BALIC, 1973, p. 174).
Tal divisão é insustentável quando tomamos o texto que é a base de nossa mariologia contemporânea, o Capítulo VIII da Lumen Gentium, intitulado “A Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja”. Nesse texto do magistério da Igreja, não encontramos uma divisão da pessoa de Maria, mas uma progressão no conhecimento de sua pessoa e missão, partindo da “economia da salvação” presente nas Escrituras, passando pelas questões mariológicas relevantes ao nosso tempo e concluindo com as orientações sobre o culto mariano e a contemplação de Maria como um sinal de esperança e de consolação.
Na trilha metodológica da Lumen Gentium, queremos apresentar nossa reflexão mariana, destacando alguns aspectos bíblicos da fisionomia de Maria, para depois vermos como se harmonizam com os dogmas relacionados a ela e, por último, como todo esse conjunto “deságua num rio de afeto” à Virgem traduzido pela piedade popular.
É comum escutarmos que as Sagradas Escrituras falam pouco de Maria. De fato, quantitativamente falam muito pouco e, no pouco que falam, não nos trazem detalhes sobre sua pessoa, como aparência, costumes cotidianos e datas significativas. Contudo, nesse pouco que nos é transmitido, encontramos excepcional densidade que relaciona a Mãe de Jesus com a história da salvação, pensada, sobretudo, a partir da encarnação – Páscoa – Pentecostes (VALENTINI, 2007, p. 21). Assim, “Maria, que entrou intimamente na história da salvação, de certo modo reúne em si e reflete as maiores exigências da fé […]” (LG 65).
Por ela reunir em si e refletir as exigências da fé é que lançamos o olhar ao Antigo Testamento não procurando a pessoa Maria de Nazaré, mas os contornos de sua espiritualidade, que é a espiritualidade do povo de Deus, vivida, sobretudo, na história das mães de Israel e de outras corajosas mulheres que não hesitaram em pôr a própria vida em risco por causa da Aliança que Deus fez com seu povo e que deve ser mantida. Nesse sentido, falamos de prefigurações marianas do Antigo Testamento: imagens retiradas desse conjunto textual que servem para compreendermos a espiritualidade de Maria de Nazaré enquanto Filha de Sião e enquanto a Nova Jerusalém em atitude de acolhimento ao seu Messias libertador.
Mas por que os textos bíblicos não se dedicaram a falar mais de Maria, deixando essas poucas informações, na maioria encontradas nos chamados “Evangelhos da Infância”, ou seja, nos dois primeiros capítulos de Mateus e Lucas? Não podemos nos esquecer de que as primeiras comunidades tiveram um desafio muito grande: explicar como Aquele que morreu da forma mais humilhante é o Senhor da glória. Isso constitui um objeto prioritário na explicitação de sua fé, de modo que a figura de Maria está a serviço dessa proclamação do Crucificado como o Senhor vivo e presente na comunidade e na história.
Nesse sentido, Maria é a imagem do povo de Deus que professa Jesus como o Messias, o ungido de Deus Pai com a força do Espírito Santo. Enquanto imagem do povo em atitude de abertura/acolhimento, ela aponta para um mistério maior que sua vida: “a Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14). Maria é a testemunha privilegiada de que essa Palavra se fez carne, pois se fez verdadeiramente humano em seu ventre. Ela é chave privilegiada de contemplação da humanidade de Jesus, garantindo-nos que ele nasceu, entrou em nossa história, se fez um de nós, com exceção do pecado.
À luz desse testemunho messiânico de Maria no Novo Testamento, gostaríamos de destacar brevemente três dimensões: Maria concebe Jesus na força do Espírito Santo, sua condição de mulher pobre em Nazaré e sua fé no Deus de Israel.
O Novo Testamento reconhece em Jesus o Messias, o Cristo de Deus Pai, pois ele é, por excelência, o ungido de Deus Pai com o Espírito Santo. Sendo assim, sua entrada na história da humanidade, como humano, é evento pneumatológico. É na força do Espírito Santo que Maria concebe Jesus. Essa afirmação está em consonância com todos os evangelhos que apresentam Jesus como Aquele que está “cheio do Espírito Santo”. É curioso observar que aquele que foi concebido pelo Espírito Santo também ressuscita no poder do Espírito Santo. Desse modo, Maria é apresentada como a terra virginal do paraíso que, sob a sombra do Altíssimo, concebe um novo mundo, uma nova criação em Jesus, seu filho.
A relação de Maria com o Espírito Santo apresenta uma singularidade toda nova, contudo essa realidade não a retira da história concreta de seu tempo. A mãe do Messias, marcada pelo Espírito Santo, é uma jovenzinha da cidade de Nazaré. Lembrar a cidade de Nazaré não é mera curiosidade quanto ao lugar de origem de Maria, mas informação que acentua a opção preferencial de Deus pelos pobres, pois essa cidade, que nem sequer existia no mapa de seu tempo, era marcada profundamente pela pobreza. Tanto que, ao levarem Jesus ao templo, Maria e José oferecem um par de pombinhos (cf. Lc 2,24), o sacrifício oferecido pelos pobres segundo o livro do Levítico (cf. Lv 12,8).
Também Maria foi uma mulher de fé (cf. Lc 2,45). Acreditou na palavra de Deus expressa na tradição de Israel, na palavra do anjo, acreditou em seu Filho e, mesmo depois de sua morte e ressurreição, está reunida, na comunhão da Igreja nascente, em oração. E na condição de mulher de fé, fez de toda a sua vida uma oração inserida no seu cotidiano de mãe e esposa, de mãe de um jovem perseguido e morto na forma humilhante da cruz, de uma seguidora do próprio Filho à espera do Espírito Santo.
Poderíamos elencar outros elementos que o Novo Testamento tem para nos oferecer, contudo esse breve elenco de elementos nos remete ao que queremos destacar dos textos neotestamentários: em Maria não há dicotomia entre fé e vida, entre o Espírito de Deus e a história da humanidade; entre sua profunda comunhão com Deus em sua intimidade e a profunda comunhão com Deus na fraternidade do movimento de Jesus. Maria é a mulher toda de Deus na história concreta da humanidade.
A Igreja conservou essa discreta singularidade de Maria, encontrada no Novo Testamento, de diferentes modos, desde pinturas até o culto mariano. Contudo, o lugar em que mais se concentra a percepção eclesial dessa singularidade são os dogmas relacionados a Maria.
São quatro os dogmas que se relacionam com sua pessoa, a saber: maternidade divina, virgindade perpétua, imaculada conceição e assunção ao céu. Todos eles estão intimamente ligados pela profissão de fé em Jesus como o Filho de Deus. Vejamos o primeiro dogma.
Em 431, o Concílio de Éfeso se ocupou em esclarecer a forma como a humanidade e a divindade de Jesus se relacionam em sua pessoa. Compreende-se que Jesus é todo humano e todo divino, sem que primeiro fosse humano e depois a divindade pousasse sobre sua humanidade como que num templo. Logo, podemos dizer que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus “segundo a carne” assumida pelo Verbo.
Mas como Maria viveu essa real maternidade? Existe uma singularidade nela? Essa singularidade é a virgindade perpétua de Maria, que, num sentido mais profundo da afirmação, nos diz que Maria viveu totalmente consagrada ao projeto de Deus Pai, em nada incorrendo em qualquer forma de idolatria; ela é uma criatura totalmente de Deus. Sendo toda de Deus, sua vida é de total abertura à ação do Espírito Santo, e por essa acolhida ao Paráclito é que professamos, com o Credo Niceno-Constantinopolitano, que o Verbo “se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria”. Sua virgindade corporal e espiritual (ausência de qualquer idolatria) foi consagrada com a maternidade do Verbo; logo, sua virgindade não é algo periférico ou instrumental, mas uma dimensão visceral do seu ser, de modo que o Concílio de Constantinopla II, em 553, irá nos dizer, em conformidade com o que a grande Igreja já dizia, que a Mãe de Jesus é a “sempre-virgem (aei-parhenos) Maria”.
Quando falamos de virgindade, é sempre muito importante deixar claro que a virgindade é um dom de Deus e uma resposta humana que implica uma atitude de abertura amorosa e liberdade psicológica, pois do contrário seria endurecimento de coração e algum tipo de patologia.
Maria é a maior e melhor expressão da virgindade, porque esta é vivida na fecundidade do Espírito Santo. Desse modo, sua virgindade está a serviço da ação do Espírito, que nos atesta a dupla origem de Jesus: a divina, na condição de “Verbo do Pai” (Jo 1,18), e a humana, pois nos referimos a alguém “nascido de mulher” (Gl 4,4). A maternidade virginal de Maria é radical consagração a Deus Pai, na história da salvação centrada em Jesus Cristo, a serviço e na força do Espírito Santo.
Ao dizermos que Maria é radicalmente consagrada a Deus, podemos incorrer em grave erro: não reconhecer a iniciativa de Deus em direção a ela. Criação, salvação e santificação são sempre uma ação de Deus em direção à humanidade, um transbordamento de seu amor que atinge todo o universo, numa clara manifestação da sua bondade e gratuidade. Toda a criação está marcada pela graça desde os primórdios. Logo, a graça é anterior ao pecado. E como expressão do primado da graça de Deus é que a Igreja afirma, com o dogma da Imaculada Conceição de Maria, proclamado por Pio IX em 1854, que, em virtude da encarnação do Verbo, Maria foi preservada do pecado original, ou seja, “foi redimida de modo mais sublime” (LG 53), para acolher no seu seio o Filho de Deus e para testemunhar a redenção universal de todos os fiéis, recebendo por graça a “redenção preventiva”. Podemos dizer, então, que a Imaculada Conceição “é o triunfo unicamente da graça de Deus: sola gratia” (LAURENTIN, 2016, p. 173).
Mas tal triunfo se encerra com a morte de Maria? Qual foi o destino último daquela que nos trouxe o Salvador? Uma das primeiras vozes na Igreja a se perguntar sobre o fim da vida terrena de Maria foi o bispo de Salamina, santo Epifânio, numa carta do ano de 377 (LAURENTIN, 2016, p. 76 e 90). A partir dessa pergunta inicial, a Igreja foi tomando maior consciência de que Maria foi a primeira pessoa a ser assumida pelo poder da ressurreição de Cristo (cf. Fl 3,10) e de um modo singular, sendo totalmente assumida por Deus, em toda a sua realidade de pessoa, ou seja, assumida por Deus em “corpo e alma”. Com isso, Maria não fica separada da vida concreta de nossa história, mas se torna nossa companheira na caminhada como um sinal de esperança em Deus. É o que o documento de Puebla nos diz: “Maria, por sua livre cooperação na nova aliança de Cristo, é junto a Ele protagonista da história. Por esta comunhão e participação, a Virgem Imaculada vive agora imersa no mistério da Trindade, louvando a glória de Deus e intercedendo pelos homens” (CNBB, n. 293).
Assim, em 1950, Pio XII proclama que “a imaculada [Mãe de Deus], sempre virgem Maria, completado o curso da vida terrestre, foi assumida em corpo e alma na glória celeste” (DENZINGER; HÜNERMANN, n. 3.903).
Resumindo a questão dos dogmas relacionados a Maria, é mister evidenciar que os dogmas da Maternidade Divina e da Virgindade Perpétua relacionam-se diretamente com a pessoa de Jesus e sua missão messiânico-soteriológica; logo, são dogmas cristológicos e, num segundo momento, marianos. Já os dogmas proclamados por Pio IX e Pio XII são mais específicos em seus enunciados sobre a pessoa, o papel e o destino de Maria, mas não deixam de falar sobre algo que é comum a todos nós, pois todos, pelo batismo, somos resgatados pela graça original e nos é dada a condição de filhos e filhas de Deus, destinados à salvação na glória celeste (PERRELLA, 2003, p. 56). Neste sentido é que falamos que o dogma da Imaculada Conceição é um dogma mariano e soteriológico e que o dogma da Assunção de Maria é mariano e escatológico.
Só houve um desenvolvimento dogmático em torno da Mãe de Jesus porque, primeiramente, compreender o papel de Maria na história da salvação é uma forma de compreender Jesus como o Messias e o Filho de Deus. Mas também porque, no coração da Igreja, se foi desenvolvendo um verdadeiro amor para com a Mãe de Jesus, amor que se traduziu em expressões de devoção.
Tal devoção mariana e popular ganhou grande impulso, sobretudo, depois do Concílio de Éfeso, mas já antes temos elementos importantíssimos dessa relação de devoção à Mãe de Jesus. É o que inferimos quando deparamos com o afresco da Virgem e o Menino Jesus, pintado nas catacumbas de Priscila, em Roma, de aproximadamente 150 d.C. Ou ainda com a oração Sub tuum praesidium (“Sob a vossa proteção”), datada do final do século III ou início do século IV.
Nesses simples exemplos elencados, temos dois elementos característicos de toda piedade mariana do primeiro milênio da Igreja: a imagem de Maria sempre unida a seu Filho e a sua intercessão na Igreja.
Ambos parecem ser de uma obviedade muito grande, mas merecem ser destacados a par de expressões piedosas pouco salutares que encontramos nos dias de hoje. No primeiro milênio do cristianismo, Maria era sempre representada com Jesus, com raras e pontuais exceções. Pensar Maria sempre unida a seu Filho é entendê-la no seu papel materno-messiânico, encontrado nos evangelhos e na proclamação de Maria como Theotokos (431). Ela é toda relativa a Jesus, mostrando-o como o “caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Tal compreensão contrasta com afirmações surgidas a partir da Idade Média segundo as quais Maria seria como que uma segunda instância de salvação, em que a Mãe bondosa bloqueia a ira do Filho enquanto juiz terrível. Ou como alguém que mereça os mesmos louvores (não adoração) dirigidos a seu Filho, recebendo um culto todo paralelo à liturgia, muitas vezes mesclado de superstições.
O segundo tema que destacamos é a intercessão de Maria. Ela, voltada a Deus Pai, com o Filho e no Espírito Santo, apresenta-se como o ícone da Igreja em oração. Mergulhada no mistério de Deus, na comunhão dos santos, permanece unida a toda a Igreja de Jesus pelo laço da oração e do afeto.
A intercessão de Maria desperta em nós o impulso de repensar algumas questões que o cenário teológico atual retoma com renovado interesse. Por exemplo, o papel do Espírito Santo na oração, pois é ele quem une todos nós na oração, em diferentes tempos e lugares. Sendo ele o laço de amor que une Deus e a humanidade, podemos dizer que é com sua mediação que todos nós rezamos, pois sem o Espírito Santo nossa oração seria um gemido calado no peito, e não um lançar-se no mistério de Deus, vinculado à fraternidade eclesial. É porque Maria está unida ao Espírito Santo que ela recebe nossos pedidos de oração e reza conosco.
Pensar o Espírito Santo como Aquele que nos une a Deus e entre nós em fraternidade ajuda-nos a corrigir a excessiva ênfase dada a Maria que obscureceu o lugar, o papel e a pessoa do Espírito Santo na Igreja ocidental. Nas palavras de René Laurentin: “Foi dito muitas vezes que Maria é toda relativa a Cristo. Não foi dito o suficiente que é toda relativa ao Espírito Santo” (LAURENTIN, 2016, p. 186).
Tal destaque dado a esses dois elementos da piedade mariana do primeiro milênio não implica o desprezo a toda expressão devocional que surgiu a partir do segundo milênio. Lembremos expressões piedosas que constituíram verdadeiras “escolas de santidade”, como a oração e devoção do rosário.
A questão é que não podemos pensar uma piedade mariana desvinculada da Tradição da Igreja e das orientações recebidas do Concílio Vaticano II, orientações essas retomadas com muita propriedade e sabedoria pela Marialis Cultus, de Paulo VI. Hoje, não se pode desconsiderar, numa autêntica piedade mariana, a dimensão bíblica, assim como sua relação com a liturgia e com a sensibilidade ecumênica, à qual todos devemos estar atentos.
Outro desafio da piedade mariana é libertar Maria de imagens machistas, coloniais e triunfalistas. Recuperar sua compreensão como mulher e como irmã de todos nós, o que em nada diminui sua virgindade e maternidade eclesial.
Conclusão
O pontificado do papa Francisco nos traz grandes e necessários desafios, sobretudo o de “uma Igreja em saída”. Perguntando pela contribuição da mariologia para esse plano eclesial, deparamos com um urgente desafio: construir uma “mariologia em saída”. Felizmente, alguns significativos passos já estão sendo dados, os quais merecem todo o esforço da comunidade eclesial. Vejamos os “mais urgentes”.
Uma mariologia ecumênica: já não é possível pensar que Maria pertence apenas aos católicos latinos e ortodoxos. Ela é de toda a Igreja de Jesus. Celebrando os 500 anos da Reforma, percebemos que um passo que precisa ser mais bem trabalhado é a mariologia. Ainda estamos longe de alcançar um consenso mariológico, sobretudo em relação aos dois últimos dogmas de 1854 e 1950, mas podemos alcançar a harmonia na busca de formas comuns de expressar o mistério da encarnação, valorizando a singularidade daquela que mais profundamente o experimentou.
Uma mariologia latino-americana: merece destaque nesse empenho o trabalho de Ivone Gebara e Maria Clara L. Bingemer, com o livro Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres. Contudo, precisamos de novas pesquisas. A figura de Maria como conquistadora, nos moldes europeus e colonialistas, ainda é muito presente, não permitindo que a força libertadora que ela traz consigo alcance com maior vigor os pobres, as mulheres e todas as vítimas da opressão em nosso chão. É preciso que em nossas Igrejas permitamos que a Virgem do Magnificat erga seus braços e cante a libertação que começou em Jesus e deve continuar como um processo sociotransformador pautado no evangelho.
Uma mariologia das bem-aventuranças: essa expressão mariológica toma como base o Evangelho de Mateus (5,1-10), percebendo Maria como uma mulher pobre no espírito, que chora, mansa, que tem fome e sede de justiça, misericordiosa, pura de coração, promotora da paz e perseguida, sempre na perspectiva do Reino de Deus. Muitas vezes nos esquecemos que Maria viveu também na perspectiva do Reino de Deus inaugurado em Jesus, o que a deixou à sombra de seus privilégios. Os privilégios de Maria se pautam na sua inegável singularidade na história da salvação, mas não a desligam dessa história, pois ela é nossa companheira de viagem na luta por um mundo mais justo para todas as pessoas.
Que cada “ave, Maria”, emergindo de um coração sincero, brote nos lábios como um desejo de seguir Jesus como ela o seguiu, de se abrir à grandeza suave do Espírito Santo como ela se abriu, de modo que o Pai receba o louvor e a ação de graças de seu povo santo e sacerdotal.
Bibliografia
BALIC, Carlo. La Chiesa e Maria Santissima. In: VAN LIERDE, Pietro Canisio G. et al. Lo Spirito Santo e Maria Santissima. Città del Vaticano: Tipografia Poliglotta Vaticana, 1973.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Puebla: a evangelização no presente e no futuro da América Latina. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
DENZINGER, H; HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.
DOCUMENTOS do Concílio Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997.
GEBARA, Ivone; BINGEMER, Maria Clara L. Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres: um ensaio a partir da mulher e da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987.
LAURENTIN, René. Breve trattato sulla Vergine Maria. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2016.
PAULO VI. Marialis Cultus. São Paulo: Paulinas, 1974.
PERRELLA, Salvatore M. Maria Vergine e Madre: la verginità feconda di Maria tra fede, storia e teologia. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2003.
VALENTINI, Alberto. Maria secondo le Scritture: Figlia di Sion e Madre del Signore. Bologna: EDB, 2007.
Jonas Nogueira da Costa, OFM(Ordem dos Frades Menos)
Fonte: http://www.vidapastoral.com.br/edicao/maria-de-nazare-aspectos-biblicos-eclesiais-e-devocionais/