Antes do Concílio Vaticano II a Bíblia era tida como tão sagrada a ponto de ser inacessível, hoje está nas mãos da grande maioria dos cristãos; isto graças a constituição “Dei Verbum” que estimulou e tornou possível esta realidade. No entanto para aqueles que tentam lê-la sem nenhuma orientação, a confusão é certa. O resultado é uma “leitura ao pé da letra”, com consequências desastrosas, visto que a Palavra de Deus está contida na Sagrada Escritura mas revestida da cultura semita (cultura judaica).
É preciso, ainda, considerar os estilos literários, com suas distintas chaves de interpretação, pois “A verdade é apresentada e expressa de maneiras bem diferentes nos textos de um modo ou outro históricos, ou proféticos, ou poéticos, bem como em outras modalidades de expressão. Ora, é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, conforme a situação de seu tempo e sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio de gêneros literários então em uso” (DV 12).
A Bíblia é, portanto, veículo da Palavra de Deus. No entanto os textos bíblicos são frutos das suas respectivas épocas, histórias e contextos sociais e econômicos. Precisam ser interpretados a fim de que se tenha condição necessária para uma boa interpretação da mensagem. Seja qual for nosso conhecimento da Escritura somos sempre questionados pelo texto. Do contrário caímos no fundamentalismo.
A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada é isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Ela se opõe à utilização de qualquer método para a interpretação da Escritura. Esse tipo de leitura faz com que a Bíblia deixe de ser “veículo” da Palavra de Deus e passa a ser instrumento supersticioso.
Ao buscarmos a palavra de Deus na Bíblia precisamos entender que “A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita” (DV,12); ou seja: o mesmo Espírito que inspirou os livros santos deve iluminar os que, docilmente e com espírito de fé, se dedicam a interpretá-los. A interpretação deve ser feita a partir da fé e não contra a fé. E assim fazer a experiência do profeta que diz: “Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me; elas se tornaram para mim uma delícia e a alegria do coração” (Jr 15,16).
Uma das formas mais apropriadas para se ter contato com a Palavra de Deus é a prática da Lectio Divina. Essa “leitura orante da Bíblia” foi exortada pelos Padres da Igreja e tem sido cultivada através dos séculos no coração da vida monástica. Atualmente se redescobriu, com grande entusiasmo entre os leigos, fruto do movimento bíblico e do Concilio Vaticano II. A partir da exortação apostólica Dei Verbum (n 25) reconheceu vivamente esta prática e, desde então, os documentos da Igreja não tem deixado de recomendá-lo.
A Lectio Divina é, basicamente, o exercício dum coração disposto ao encontro com Deus através da Sagrada Escritura. É um exercício de leitura, mas é também uma oração. Seus frutos não vêm tanto pelo acúmulo de saber sobre a Bíblia, mas da audição da voz de Jesus que, depois da sua morte e ressurreição, se realiza, se dá de forma semelhante a dos discípulos de Emaús: “E, então, abriu suas inteligências para que compreendessem as Escrituras”( Lc. 24, 45).
Este método de leitura da Sagrada Escritura realiza-se através de passos bem definidos, que podem se expressar didaticamente não só para compreendê-los melhor, mas também para praticá-los e ensiná-los. Foi o monge Guigo, em aproximadamente 1150, quem propôs estes quatro passos: leitura, meditação, oração e contemplação. Percebemos, assim, a Lectio Divina como uma escada, onde cada etapa do processo é um degrau.
O papa emérito Bento 16, na Verbum Domini, nos propõe: Começa com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação sobre um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o texto bíblico em si? Sem este momento, corre-se o risco que o texto se torne somente um pretexto para nunca ultrapassar os nossos pensamentos. Segue-se depois a meditação (meditatio), durante a qual nos perguntamos: que nos diz o texto bíblico? Aqui cada um, pessoalmente mas também como realidade comunitária, deve deixar-se sensibilizar e pôr em questão, porque não se trata de considerar palavras pronunciadas no passado, mas no presente. Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que supõe a pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua Palavra? A oração enquanto pedido, intercessão, ação de graças e louvor é o primeiro modo como a Palavra nos transforma. Finalmente, a lectio divina conclui-se com a contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como dom de Deus o seu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é a conversão da mente, do coração e da vida que o Senhor nos pede? – Para Bento 16 a Lectio Divina tem suas consequências – Há que recordar ainda que a lectio divina não está concluída, na sua dinâmica, enquanto não chegar à ação (actio), que impele a existência do fiel a doar-se aos outros na caridade (VD, 87).
A Bíblia é um livro complexo porque composto de vários textos contraditórios e uma leitura que não seja sistemática e crítica poderá levar o leitor a uma visão passiva da vida. Para compreender bem um texto é preciso compreender o mundo do autor. Esse trabalho se chama exegese. Doutro modo caímos no fundamentalismo. Sendo assim é necessário buscar as fontes, retornar, compreendendo e superando ideologias até chegar à verdadeira intenção exercendo uma leitura espiritual da Bíblia iluminando a própria realidade.
Conforme o apóstolo Paulo “A letra mata, o Espírito dá vida” (2 Cor 3,6). “Por isso é necessário prover também a uma preparação adequada dos sacerdotes e dos leigos, para poderem instruir o Povo de Deus na genuína abordagem das Escrituras”(VD 73). De modo que cultivem a oração e a meditação da Palavra de Deus e desenvolvam uma espiritualidade centrada na Palavra e encontrem nela motivações para vivência da fé. E assim superem o alerta de São Jerônimo: “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”. A Escritura é antes de tudo Palavra de Deus. Mas não uma palavra aprisionada no passado, mas sim palavra viva que se dirige ao homem de hoje.
Pe Bruno Costa Ribeiro,
na Folha Diocesana, n 219, Setembro de 2014