Por Abel Mourão
Uma das mais emblemáticas passagens evangélicas sobre Jesus de Nazaré é a sua transfiguração diante dos três discípulos, conforme atestam as narrativas nos três Evangelhos sinóticos (Mateus 17,1-9; Marcos 9,2-10 e Lucas 9,28-36). A Transfiguração do Senhor se tornou uma festa celebrada na liturgia da Igreja Oriental desde o século V, enquanto no Ocidente ela foi introduzida no calendário litúrgico no século XV. Ela possui, portanto, um significado de alta importância na fé cristã não apenas para aquelas testemunhas oculares, mas para os cristãos de todos os tempos.
Não por acaso, essa passagem vem logo após a profissão de fé de Pedro, na qual ele proclama a Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), bem como após o primeiro anúncio da Paixão, pelo qual Jesus confidencia aos discípulos que ele iria sofrer nas mãos dos sacerdotes e dos escribas, seria morto e ressurgiria no terceiro dia (Mt 16,21). Seus discípulos não conseguiram conciliar a imagem do Messias vitorioso com o dramático fim que Jesus anunciou sobre si mesmo, uma vez que sua morte seria compreendida, naturalmente, como o fracasso da sua missão. O Messias esperado pelos judeus viria para reinar gloriosamente e restaurar a paz em Israel, e não para padecer como um derrotado. Pedro, razoavelmente, estranhou o anúncio da morte de Jesus (Mt 16,22). Apenas a revelação manifestada na transfiguração seria capaz de unir o que parecia ser incompatível: a identidade messiânica de Jesus com a sua missão vicária – o Servo sofredor profetizado por Isaías: “Eis o meu servo que eu sustenho, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre ele o meu espírito; ele trará o julgamento às nações” (Is 42,1).
A fim de superarem as incompreensões e adentrarem no mistério que Jesus os convidava, Ele leva consigo Pedro, Tiago e João ao monte para orar e lá acontece o mistério da Transfiguração, como relata o evangelista Mateus:
Seis dias depois, Jesus tomou Pedro, Tiago e seu irmão João, e os levou para um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E ali foi transfigurado diante deles. O seu rosto resplandeceu como o sol e as suas vestes tornaram-se alvas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias conversando com ele. Então Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, levantarei aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Ainda falava, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra e uma voz, que saía da nuvem, disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o!”. Os discípulos, ouvindo a voz, muito assustados, caíram com o rosto no chão. Jesus chegou perto deles e, tocando-os, disse: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Erguendo os olhos, não viram ninguém: Jesus estava sozinho” (Mt 17,1-9).
Jesus levou os três discípulos para o alto da montanha, lugar próprio do encontro com Deus na espiritualidade israelita – como fez Moisés ao ser chamado por YHWH e receber as tábuas da Lei. Jesus foi transfigurado diante deles, resplandecendo a glória celeste em seu corpo, como seria compreensível acontecer àqueles que são envolvidos pela presença divina. Os discípulos certamente se lembraram de Moisés, que, ao se encontrar com Deus no Monte Sinai, desceu com o rosto resplandecente (Ex 34,29-30). Compreenderam que ali estava a presença do Criador, origem da luz gloriosa e da profusão de vida.
“O rosto de Deus, radiante de alegria, é a fonte de luz do Espírito Santo. Sua luz nos inunda, e nossos rostos se tornam espelhos que refletem e espalham essa luz” (MOLTMANN, 2002, p. 22).
Não obstante, a voz de Deus ecoa naquele lugar, declarando a identidade de Jesus: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; ouvi-o!” (Mt 17,5), mesma declaração teofânica ocorrida em seu batismo (Mt 3,17). Trata-se da revelação mais importante sobre Jesus: sua divindade é declarada pelo próprio Deus nas duas teofanias. Esse é o fundamento da fé cristã, o qual os discípulos de todos os tempos devem acolher pela fé e receber, por ela, a esperança de serem filhos no Filho. Jesus não era mais um dos profetas, tampouco um presunçoso derrotado pelo Sinédrio sob a autoridade de Pilatos. Ele é o Filho de Deus, como bem declarou o centurião ao contemplá-lo pendente na cruz (Mc 15,39). A compreensão da sua identidade ainda precisaria ser amadurecida pelos discípulos, assim como precisa ser na experiência religiosa de cada cristão.
Uma beleza singular dessa última teofania – a transfiguração – é que Deus une nesse encontro as testemunhas da Antiga Aliança com aqueles que serão testemunhas da Nova Aliança – os discípulos. Revela a esses últimos a identidade do seu Ungido que, em poucos dias, consumaria a Eterna Aliança de Deus com a humanidade pela oblação da sua vida. Os elementos presentes na transfiguração demonstram a continuidade da Antiga para a Nova Aliança. Nas pessoas de Pedro, Tiago e João, está representado o Novo Povo de Deus, a Igreja, aberta à universalidade.
Mas a declaração divina se estende: “ouvi-o!”. Com esse imperativo, Deus concede autoridade a Jesus, confirmando-o diante dos homens como fonte reveladora da verdade. Impossível para aqueles discípulos de origem judaica não serem remetidos ao pilar da sua tradição: “Ouve, ó Israel: YHWH nosso Deus é o Senhor” (Dt 6,4). Ouvir e colocar em prática era, para eles, acolher e viver o mandamento de Deus. Em última instância, amá-lo. A Jesus, portanto, Deus concede essa autoridade: suas palavras são verdadeiras e dignas de fé, devem ser acolhidas e vividas como expressão do desejo humano de amar a Deus. “Quem tem meus mandamentos e os observa é que me ama; e quem me ama será amado por meu Pai. Eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14,21).
Para tornar mais clara a revelação, aparecem Moisés e Elias junto de Jesus, expoentes e representantes da Lei e dos profetas – pilares da fé de Israel. A presença dos dois conversando com Jesus indica que Ele é testificado pelas duas testemunhas da tradição judaica. Tanto a Lei mosaica quanto os profetas o anunciaram e prepararam o povo eleito para esse momento: a vinda do Cristo de Deus. E ali se encontrava Ele, resplandecente, transfigurado em glória diante de Pedro, Tiago e João. Não por acaso, esses mesmos três discípulos testemunharam sua agonia no Jardim do Getsêmani (Mc 14,33). Essas testemunhas contemplaram a manifestação de sua glória para, posteriormente, presenciarem seu sofrimento e condenação. Somente após verem Jesus glorificado e confirmado pelo Pai, eles poderiam permanecer fiéis ao verem-no sofrer os tormentos da paixão e ser morto como um derrotado na cruz. A fé oriunda da experiência que tiveram da transfiguração seria capaz de fortalecer e transpor a dúvida e a angústia diante do aparente fracasso de Jesus na cruz, até que sua ressurreição conferisse uma conclusão vitoriosa à sua vida e missão. Bento XVI refletiu bem acerca desse evento:
“A cruz de Jesus é êxodo: partida desta vida, passagem através do ‘mar vermelho’ da paixão e ida para a glória, na qual permanecem os sinais das chagas […]. Deste modo, mostra-se claramente que o tema fundamental da lei e dos profetas é a ‘esperança de Israel’, o definitivo êxodo libertador; que o conteúdo desta esperança é o Filho do homem sofredor e servo de Deus, o qual, sofrendo, abre as portas para a liberdade e para a novidade. Moisés e Elias são, eles mesmos, figuras e testemunhas da paixão.” (BENTO XVI, 2007, p. 265).
O que era um “escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1Cor 1,23) foi revelado aos discípulos na transfiguração: o Filho de Deus está entre os homens e possui a autoridade da Palavra divina, pois é o autêntico revelador do Pai. “Poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), como afirmou o apóstolo Paulo. “Ouvi-o!” (Mt 17,5), disse Deus da nuvem. Através de Cristo, Deus escolheu se manifestar ao mundo de forma humilde, sem força ostensiva nem sedução filosófica. Apontou o caminho do amor, da compaixão e da misericórdia como uma trilha certa para uma vida plena. Despojado de tudo o que é corruptível, fez-se obediente à vontade do Pai, corrigindo a desobediência do pecado original que separou o homem de Deus. Enfrentou o desprezo e a morte para dar ao mundo o amor que o salvaria da eterna separação. A humilde e, ao mesmo tempo, gloriosa oblação de sua vida reintegrou a humanidade em uma amizade com a Trindade de uma forma superior. Pela sua encarnação, oferece a cada pessoa humana a possibilidade de participar da natureza divina – ser feito filho de Deus, filho no Filho (Gl 4,5). Assim nos ensina a Igreja no comentário da Festa da Transfiguração do Senhor: “A palavra do Pai preanuncia a adoção filial dos que, escutando e seguindo o Filho predileto, se tornam seus irmãos e partícipes da transfiguração eterna” (Missal Romano, 2023, p. 767).
Diante da vida e dos ensinamentos de Jesus que conhecemos, vale refletir se a experiência religiosa que temos vivido nos coloca à sua escuta. Se nos permitimos ser confrontados pela sua Palavra e se temos o coração atravessado por ela. Ou se, diferentemente, a experiência religiosa vivida apenas fortalece as próprias convicções do homem velho, petrificado na zona de conforto da autorreferencialidade. Essa última postura se enquadra nas formas de idolatria condenadas por Deus desde o antigo Israel, na qual o homem, enganando-se a si mesmo, faz de si seu próprio deus. É Preciso nos colocarmos diante daquele que foi transfigurado e revelado no monte, para que sua Luz ilumine o nosso ser e sejamos, à sua imagem e semelhança, filhos do Altíssimo. Somente assim a nossa religião pode corresponder ao projeto originário do Criador: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1,26). Deus, pela sua teofania, testemunha quem é Jesus e o revela ao mundo. Desfaz as insuficientes imagens pré-concebidas, errôneas, ideológicas. Ainda hoje, a identidade de Jesus precisa ser revelada ao mundo para que o conheçam e o amem.
“Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3).
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus,2022.
BENTO XVI, Papa. Jesus de Nazaré: primeira parte: do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
Missal Romano, 2023, 3ªed, p.767
MOLTMANN, Jürgen. A fonte da vida – O Espírito Santo e a teologia da vida. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p22
Autor: Abel de Pinho Mourão- 3° Ano da Configuração.