Nos últimos dois séculos a humanidade vivenciou consideráveis avanços na área da produção industrial devido a evolução das tecnologias de automação, alargando sucessivamente as metas de produção. Esse fenômeno, aliado às políticas econômicas e sociais, elevaram consideravelmente o padrão de vida de grande parcela das sociedades ocidentais. A evolução tecnológica dinamizou e otimizou a escala produtiva de bens de consumo, elevando a sociedade ao nível sociológico denominado de sociedade industrial avançada (MARCUSE, 2015). Porém, a promessa dos direitos e liberdades que a sociedade industrial promoveu não atingiu os princípios fundamentais de liberdade que se supôs. A liberdade de pensamento e autodeterminação foi substituída pela satisfação das necessidades. A compreensão de liberdade como autonomia do pensamento e da crítica foi gradativamente suprimida, substituída pelo conceito de liberdade como superação das necessidades materiais que o sistema industrial pode proporcionar.
O progresso técnico produtivo da sociedade industrial alcançou uma tal capacidade de organização capaz não apenas de fornecer os subsídios necessários para satisfazer as demandas das cidades, mas também a de promover uma racionalização da vida da sociedade como um todo. O processo de racionalização opera simultaneamente uma supressão da individualidade e consequentemente uma limitação da liberdade que acontece de forma silenciosa. Este fenômeno de alienação é mascarado pelo conforto material, devido a superação das necessidades materiais. “Uma não-liberdade confortável, muito agradável, racional e democrática prevalece na civilização industrial avançada, um sinal do progresso técnico” (MARCUSE, 2015, pg.41).
O amplo acesso aos bens de serviço e consumo acomodou os cidadãos em uma situação aparentemente confortável na qual o desejo de autonomia crítica e mesmo a capacidade de resistência ao sistema vigente perde força. A sociedade industrial avançada, como a vivenciamos, consegue impor seus princípios próprios ao mesmo tempo que suprime forças de oposição ao seu status quo. Com o passar do tempo, vários princípios do capital – sistema que domina a produção e a cultura – são incorporados à vida social sem que se tome consciência da privação de sua liberdade. Estruturou-se então um método de silenciar a resistência ao sistema dominante (político-econômico). Trata-se de uma versão moderna da tática do pão e circo, para distrair a base da sociedade que, mesmo sendo numerosa, não possui força devido à falta de articulação. “Diante de um crescente padrão de vida, a não-conformidade com o sistema parece ser socialmente inútil, ainda mais, se isso acarretar desvantagens econômicas e políticas concretas e ameaçar o bom funcionamento do todo” (MARCUSE, 2015, pg.42).
A forma como a sociedade ocidental contemporânea está tecnologicamente organizada desde sua industrialização, fez com que um caráter essencialmente totalitário fosse sutilmente incutido em seu sistema, uma vez que, por totalitária, se entende também uma coordenação técnico-econômica pacífica que manipula as necessidades dos indivíduos a fim de alcançar interesses próprios. Dessa forma essa sociedade se mostra totalitária, não por possuir caráter terrorista e violento, mas por manipular os interesses e as necessidades dos indivíduos, a fim de satisfazê-los e consequentemente enfraquecer a oposição ao próprio sistema. Tem-se no cenário social uma alienação disfarçada, sustentada pela cultura do consumo em massa, e sua base é o materialismo.
Segundo o filósofo Herbert Marcuse (MARCUSE, 2015), o grau de liberdade de uma sociedade não está relacionado à autonomia na escolha dos bens e serviços disponíveis na ampla variedade do mercado, uma vez que esses mesmos bens e serviços podem mascarar princípios que sustentam a dominação e a dependência ao sistema. A adesão às necessidades impostas pela cultura não denota autoconsciência nem tão pouco a liberdade dos cidadãos, antes comprovam a eficácia do processo de alienação. A verdadeira liberdade está associada intrinsecamente ao âmbito privado no qual o indivíduo é e permanece ele mesmo, porém esse âmbito foi afetado pelos interesses do capital – poder que controla o sistema – a ponto de que processos psicológicos de introjeção fazem-no perder sua individualidade. O enfraquecimento da individualidade – na qual reside o poder crítico da razão – é resultado do próprio processo pelo qual a sociedade industrial aliena e combate a oposição, expandindo sua ideologia – consumista, materialista e alienante.
A indústria da informação e do entretenimento são eficientes em difundir hábitos que se tornam estilo de vida, que por sua vez replicam os princípios categóricos consumista e materialista. Esse fenômeno é muito perceptível especialmente nas sociedades capitalistas ocidentais, nas quais o poder persuasivo da indústria da propaganda está fortemente estruturado em todos os âmbitos. Seja através dos produtos de bens e serviço, seja no entretenimento das grandes mídias e plataformas digitais. É uma cultura materialista e alienante que se impõe pelo poder da técnica e do bem-estar. O próprio discurso midiático determina o que seja liberdade, assim como o que sejam necessidades e inclusive uma vida feliz. Temos “uma sociedade avançada que converte o progresso científico e técnico em um instrumento de dominação” (MARCUSE, 2015, pg52). Ao mesmo tempo que fornece bens materiais, aliena os cidadãos de suas necessidades existenciais, como a liberdade, a transcendência e a autodeterminação.
Tudo passa a perder os sentidos de sublimação e transcendência ao ser objetivado e mercantilizado, o que demonstra a força totalitária, degradante do sistema. A perda da consciência causada pela deturpação dos conceitos e pela alienação contribui para formar o que Marcuse (MARCUSE, 2015) entende por consciência feliz, que faz os indivíduos serem condicionados a aceitarem sem contestação tudo o que lhes é oferecido, inclusive as desigualdades. Representa a consciência feliz do homem infeliz: a consciência manipulada. É a perda da autonomia e da capacidade de autodeterminação. A transcendência é então descaracterizada pelo intencional processo de dessublimação da cultura, enquanto a oposição é sistematicamente desmantelada.
O processo de libertação envolve necessariamente a tomada de consciência da realidade, a percepção do processo de alienação e dominação social que foi instalado. Precisa-se redescobrir e difundir amplamente o conceito de liberdade, necessariamente através da cultura, uma vez que o contexto de alienação se encontra especialmente no âmbito cultural. A cultura superior tem a função de sublimação, ou seja, favorecer a constatação das contradições da realidade e, consequentemente, levar o expectador a desenvolver uma análise crítica da própria vida e do mundo que o cerca. Ela tem o poder do antagonismo, da denúncia velada da realidade. Mas essa função da cultura foi corrompida na sociedade industrial tecnológica, pois foi dessublimada, massificada, perdendo sua função reflexiva ao assumir valores que apenas perpetuam o poder do capital, o Establishment. A cultura de massa, contrariamente à cultura superior – esta possui possui valores morais, intelectuais e estéticos – é propositalmente precária, vazia, fútil. Nesse contexto, as artes deixam de possuir força de conscientização e de transformação para assumirem a função de alienação na cultura massificada, sendo incorporadas na sociedade como mercadorias de entretenimento.
Essa nova forma de vida alienada, deturpada pelos valores materialistas – confortável e conformada com a realidade alienante – não é uma vida verdadeira, ou melhor, não é compatível com uma existência autêntica e verdadeira. Ela não corresponde à realização das potencialidades particulares e tampouco com os anseios do homem, mas apenas constitui a conquista dos pré-requisitos para a existência. Ela é, por si mesma, uma existência falsificada e desprovida de liberdade. A evolução técnico-científica, mesmo com todas as suas vantagens e concretas possibilidades de benefício à humanidade, pôde se tornar um instrumento ideológico de dominação, afastando o homem de si mesmo e consequentemente da sua realização. Os anseios da alma humana ultrapassam as necessidades materiais contingentes, vão muito além da ilusão materialista que o entorpecimento consumista é capaz de realizar.
“Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez maior de técnicos, exige cada vez mais sábios, capazes de reflexão profunda, em busca de humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da contemplação. Assim poderá realizar-se em plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é, para todos e para cada um, a passagem das condições menos humanas a condições mais humanas” (PAULO VI, 1967, pg.7).
Abel de Pinho Mourão
(1º ano – Configuração)
Referência bibliográfica
Encíclica Populorum Progressio, 26 de março de 1967, pp.Paulo VI, p.7.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Editora Edipro, 2015