Livremo-nos dos nossos males, amém!

“O perigo em tempos de crise é buscar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros”.

Três dias depois da posse de Donald Trump nos Estados Unidos, li a frase acima no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Ela me fez arregalar bem os olhos pois sob ela havia uma foto do Papa Francisco em destaque.  Ponderei o fato de que o instituto é órgão transdisciplinar da Universidade do Vale dos Sinos/RS, que visa apontar novas questões e buscar respostas para os desafios de nossa época, com base numa visão humanista e cristã. Ainda assim a montagem chamou minha atenção, pois não anunciava um artigo qualquer e sim, a transcrição uma entrevista do Papa concedida aos jornalistas Antonio Caño e Pablo Ordaz, publicada originalmente pelo jornal espanhol “El País” no dia 21 de janeiro.

Minha curiosidade aumentou ainda mais,  pois a entrevista teria sido colhida na sexta-feira, enquanto Donald Trump tomava posse em Washington, daí eu imaginava a ligação imediata do enunciado com o novo governante, tentando pensar em questões brasileiras, mineiras … Coincidência ou não a frase destacada resumia um tópico da entrevista, que falava sobre populismo na Europa. Já sobre o novo líder norte americano o papa disse que “é preciso ver o que ele faz, não podemos ser profetas de calamidades”. Advertiu que, “em momentos de crise, o discernimento não funciona” e os povos procuram “salvadores” que lhes devolvam a identidade “com muros e arames farpados”.

O exemplo clássico era a Alemanha que estava destroçada nos anos 30 e tentava se levantar.  Buscava sua identidade, estava à procura de um líder, de alguém que devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler que disse “eu posso, eu posso”. Ele fez sua propaganda e toda a Alemanha votou nele. Hitler não roubou o poder, foi escolhido por seu povo, e depois destruiu seu povo. Esse é o perigo que corremos sempre, quando nos fechamos nas nossas concepções e não nos abrimos para o diálogo histórico.

Falando sobre as questões municipais, tenho alertado para perigos assim. Recentemente tenho destacado o uso exagerado pelos gestores municipais de recursos públicos para propaganda. Com a desculpa de dar publicidade aos atos institucionais, gasta-se e divulga-se repetidamente a imagem e o nome do prefeito, de um secretário, de um deputado, vereador enfim, de todo aquele que se pretende reforçar para uma próxima eleição. Festeja-se com fogos e festança qualquer evento como grande feito. Até a compra da caneta ou da prancheta que será utilizada na elaboração do projeto de reforma de uma escola, merece solenidade, festa, fotografia e divulgação na mídia…

Mas a reforma da escola, a construção da creche, da casa popular, a pavimentação e iluminação de ruas nunca acontece. Se acontecer, vai haver gravação de vinheta, comerciais e show com ditas atrações mundiais, para que o universo inteiro fique sabendo que… o gestor municipal, com apoio do deputado fulano do senador beltrano… fizeram sua obrigação.

Quando a gente fica assustada com a possível perda do emprego, do padrão de vida, da saúde, da garantia do teto ou do prato de comida, entramos em crise e acreditamos em qualquer propaganda. Quando a gente, temendo a falta de água, a febre amarela e já sem informações sobre locais de vacinação, sem notícias que nos orientem adequadamente, entramos em pânico, tudo arriscamos. Sem informação, sem diálogo, sem troca de experiência e conhecimento, daremos crédito aos salvadores de ocasião. Ficaremos suscetíveis, acreditando que até um muro (como dos presídios), uma cerca de arame (como dos lotes) – e não mais uma ponte (na engenharia chamada de Obra-de-arte Especial) ou uma porta (como a da casa própria) pode nos livrar de nossos males… aí,  estará consumado.

Propício, nesse ponto dessa nossa reflexão, destacar mais um trecho da entrevista concedida pelo Papa: “Em momentos de crise, o discernimento não funciona, e para mim é uma referência contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a identidade e defendamo-nos com muros, com arames farpados, com qualquer coisa, dos outros povos que podem nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso sempre procuro dizer: dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da Alemanha de 1933 é típico, um povo que estava naquela crise, que procurava sua identidade, e então apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, e deu.”

Sem querer ser profeta do apocalipse, lembro que, estamos entrando num ciclo viciante e perigoso. O gestor não cumpre sua obrigação, não permite a transparência de seus atos, a despeito das leis. O vereador resolve não sair da sua cômoda caverna ideológica (para não dizer outra coisa) e permite que apliquem toda a grana da publicidade institucional (já que não há atos legais para divulgar) em promoção pessoal. O grupo do poder gasta alta grana para se defender, juridicamente se for o caso, contra a imprensa livre e contra quem ainda insiste em cobrar direitos e cidadania. Aí teremos o caos.  Diante do caos, vem o deputado e promete ajudar e em seguida o salvador da pátria municipal joga a culpa da crise no sistema, na corrupção, no Ministério Público, no Juiz, no demônio, ou em Deus (que nos teria abandonado).  Então, assustados com o fim do mundo qualquer pecador cristão ou ateu que se preze, acaba dando crédito ao primeiro salvador que aparece. Garantindo que “desta vez é pra valer”, quem vai se fortalecer? Se o fortalecido político fecha a roda, vamos continuar rodando da mesma forma, dentro desse circuito viciado, sem sair do lugar.

E eis o grande perigo dos tempos de crise, mencionado pelo Papa Francisco, fortalecido por outro perigo: a liquidez das relações humanas. Sobre o perigo ou o mal da modernidade líquida, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, falecido no começo deste ano, nos alertou com sua teoria. Estamos num tempo em que vivemos, uma época de liquidez, de fluidez, de volatilidade, de repidez, de instantaneidade descartável, de incerteza e insegurança. É nesta época que toda a fixidez e ética moral, assim como  todos os referenciais morais da época anterior, denominada como modernidade sólida, são retiradas de palco para dar espaço à lógica do agora, do consumo, do gozo, da artificialidade e da felicidade obrigatória do clic mágico.

Tudo isso reforçado pelo meio virtual e instantâneo que faz com que as pessoas já não dialoguem, não se encontrem, não se toquem. Não recebam orientações práticas, nem educação sólidas. Mas aí fica o conselho do Papa Francisco: “dialoguem entre vocês”.

Para isso, é preciso nos encontrar mais, conversar mais nos abraçar mais… É preciso reunir a família, para outra coisa que não seja fazer uma self, ou assistir televisão. É preciso que os vizinhos se encontrem novamente em volta das fogueiras, dos mutirões, nas hortas comunitárias.

Apreveitemos a modernidade, para marcar nossos encontros, que seja encontros para conversar, para orar, para ler, para se divertir, para jogar bola… Quando nos encontrarmos, porém, deixemos de lado a modernidade líquida. Respiremos fundo, respiremos o tempo exato. É fundamental manter o tempo livre para o diálogo. Do contrário, dificilmente nos livraremos dos males que nos assolam.

Por mais que sejamos pecadores, não padecemos da falta de salvadores. O único já se sacrificou por nós. Concretizou-se. Trouxe-nos o humanismo num cristianismo puro e simples. Dos males que nos ameaçam, agora, tratemos cada um de nós de nos livrar. Para que nosso espírito viva lúcido, creio eu, que fomos dotados de mente pensante para pensar no próximo e coração pulsante para encontrar e dialogar com o semelhante.

Evandro Alvarenga

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