A Igreja no quarto Domingo da Quaresma (Ano A), celebra o conhecido “Dominica Laetare”.
Um Domingo luminoso por sublinhar que a vida cristã é penitência, mas também alegria (antífona de entrada da Missa e a Oração sobre as Oblatas):
“A Alegria do caminho pascal exprime-se no tema da luz: a luz é vida, é alegria, é Cristo (aclamação antes do Evangelho), e o percurso quaresmal é viagem em direção à luz, redescoberta da luz que no Batismo foi acesa para nós no Círio Pascal”) (1)
No antecedente, reflete-se sobre a água, neste refletiremos sobre o tema da luz, precedendo o próximo tema que é a vida.
Três temas que nos introduzem e nos preparam para a Semana Santa (água, luz e vida) e para recebermos o Batismo, ou renovar nossas promessas batismais na Vigília Solene da Páscoa.
A primeira Leitura (1 Sm 16, 1b.6-7.10-13a) não se refere diretamente ao tema da luz, mas nos permite a reflexão sobre o dia do nosso Batismo, quando somos ungidos para sermos testemunhas da luz.
Davi foi escolhido não pela lógica dos homens, mas segundo a lógica de Deus, que não se deixa levar pelas aparências. Davi, o filho mais novo de Jessé, é escolhido, embora jovem, anônimo e desconhecido que guardava o rebanho do seu pai.
A mensagem da Leitura é essencialmente esta: Deus escolhe e chama, habitualmente, os pequeninos, os mais fracos, aqueles que mundo marginaliza e considera insignificantes. Paradoxalmente, Deus manifesta Sua força através deles.
Urge que aprendamos a ver como Deus vê: ver para além das aparências. Somente quem tiver fé profunda e solidificada conseguirá ver como Deus vê, porque a partir da lógica mais profunda, a lógica do amor, que cria e faz novas todas as coisas.
Na passagem da segunda Leitura (Ef 5, 8-14), o Apóstolo Paulo nos coloca frente a uma escolha: luz ou trevas. Viver na luz significa viver a bondade, a justiça e a verdade.
O viver na luz, mais ainda, consiste na acolhida do dom da Salvação que Deus nos oferece gratuitamente, aceitando e vivendo a vida nova que Ele nos propõe (viver na liberdade como filhos de Deus e irmãos uns dos outros).
De outro lado, viver nas trevas consiste em pautar a vida pelo egoísmo, orgulho e autossuficiência; viver à margem de Deus, e, consequentemente, recusar Suas propostas; prisioneiro das próprias paixões, dos falsos valores.
Ser batizado e viver como filhos da luz, portanto, não nos permite cruzar os braços diante da maldade, do egoísmo, da injustiça, da exploração, dos contravalores que a sociedade propõe, tornando menos bela a vida da humanidade.
Viver como filhos da luz exige que descruzemos os braços, abramos o nosso coração e nossas mãos, em alegres e solícitos gestos de partilha e solidariedade. Incomodar-se permanentemente com a escuridão do mundo, procurando todas as formas para torná-lo luminoso.
Na passagem do Evangelho (Jo 9, 1-41), Jesus, curando o cego de nascença, é apresentado pelo Evangelista São João como “a luz do mundo”, cuja missão é a libertação da humanidade das trevas.
A adesão à proposta de Jesus nos coloca num caminho de liberdade e alcance da vida plena e feliz e, no fim dela, a eternidade.
A cegueira no tempo de Jesus, segundo a concepção da época, era um castigo de Deus de acordo com a gravidade da culpa. Ela era considerada o resultado de um pecado especialmente grave. Ser cego é ao mesmo tempo ser impedido de servir de testemunha no tribunal e de participar das cerimônias religiosas do templo.
O “cego” curado por Jesus é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, com a indesejável privação da luz, e, portanto, prisioneiros das cadeias que os impedem de chegar à felicidade e à plenitude da vida.
No gesto da cura feita por Jesus, juntando barro à Sua saliva, é o juntar da própria energia que gera vida, repetindo assim, o gesto de Deus ao criar o homem (Gn 2, 7). Nisto consiste a missão de Jesus: criar um Homem Novo e animado pelo Espírito que O acompanhou e nos acompanha ao longo de toda a História.
O banhar na piscina de Siloé (que significa “enviado”) é uma clara alusão a Jesus, o enviado do Pai, que nos oferece a água que nos banha e nos purifica de nossos pecados, tornando-nos Homens Novos, livres de toda treva e escravidão.
Diante da cura, temos atitudes diferenciadas:
– Os vizinhos que se acomodam em seu canto;
– Os fariseus que não se dispõem a acolher e a aceitar a missão de Jesus;
– Os pais que não querem se comprometer;
– Finalmente, o homem curado que faz um percurso que passa por um processo até que se torne adulto, maduro, livre e sem medo, em total adesão a Jesus (etapas: encontro com Jesus, adesão, amadurecimento, homem livre e o seguimento).
Reflitamos:
– A missão de Jesus é a criação de Homens Novos, e esta também consiste a missão de Sua Igreja. Como batizados, o que fazemos para que isto aconteça?
– O que nos impede de sermos livres no seguimento de Jesus?- O que consiste “viver na luz”?
– Quais são as situações obscuras em que podemos comunicar a luz de Deus com nossa palavra e ação?
– Com quem nos identificamos na passagem do Evangelho: com os opositores, medrosos, acomodados, inertes ou com o próprio cego curado que se torna um discípulo missionário do Senhor?
– Quaresma é tempo de conversão para que a luz de Deus possa melhor brilhar através de cada um de nós. O que temos feito para que esta conversão aconteça?
Concluo com um trecho do Prefácio da Missa, e com as iluminadoras palavras do então Papa Bento XVI em sua Mensagem Quaresmal (2011):
“…Pelo Mistério da Encarnação, Jesus conduziu à luz da fé a humanidade que caminhava nas trevas. E elevou à dignidade de filhos e filhas os escravos do pecado, fazendo-os renascer das águas do Batismo”
“O Domingo do cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós: ”Tu crês no Filho do Homem?”. “Creio, Senhor” (Jo 9, 35.38), afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes.
O milagre da cura é o sinal que Cristo, juntamente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o homem a viver como ‘filho da luz’”.
Que o Senhor nos cure de nossas cegueiras e ilumine nosso caminho de penitência e conversão, para celebrarmos, com exultação e alegria, a Páscoa do Senhor, envolvidos pela mais bela e desejada luminosidade que Deus quer nos oferecer, e no mundo haveremos sempre de ser.
Deus nos criou, escolheu, chamou e nos enviou para sermos testemunhas credíveis de Sua Luz!
1) Lecionário Comentado – p. 178.
Dom Otacilio F. Lacerda
Como precisamos do colírio da fé!
Retomo as palavras de Jacques Monod, prêmio Nobel de medicina, citadas no Missal Dominical para a passagem bíblica da cura do cego de nascença:
“O homem é um cigano perdido num universo enregelado que lhe é totalmente indiferente”.
O que esta citação quer dizer e o que tem a ver com esta cura?
Assim refletiu o Papa, anos passados:
“O domingo do cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós: «Tu crês no Filho do Homem?». «Creio, Senhor» (Jo 9, 35.38), afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes.
O milagre da cura é o sinal que Cristo, juntamente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o homem a viver como «filho da luz»”.
Convida-nos à profundidade da fé, abrindo o nosso olhar interior, não permitindo lugares para obscuridades em nossa vida, pois somos filhos da luz como afirma Paulo aos Efésios (Ef 5,8-14).
O Bispo Santo Agostinho assim se expressou:
“Os nossos olhos, irmãos, são agora iluminados pelo colírio da fé”.
Profundidade sim, obscuridade não! Necessitamos deste “colírio da fé”, para uma fé mais profunda, iluminada e iluminadora. As trevas cederão sempre à luz, que emana da Vida Nova do Ressuscitado. Crer no Ressuscitado é certeza de que as trevas cedem lugar à luz, e a morte à vida!
Sem a fé, seríamos como ciganos, vagueando nas penumbras das incertezas, sem um destino auspicioso, sem horizontes e perspectivas, enfim, sem saídas! O mundo, a vida, a nossa história seriam enregelados, tristes, sombrios… De modo que a indiferença, o desânimo, o caos nos seriam indiferentes.
Mas não! Crendo no Ressuscitado sabemos por onde e com quem caminhar, Jesus. Temos a Verdade que embasa nosso viver, o Evangelho. Temos a vida no tempo presente que se espraia nos deleites da eternidade, o Céu!
Dom Otacilio F. Lacerda
As duas posturas: cegueira e visão
A cura do cego de nascença realizada por Jesus foi para que se manifestassem as obras de Deus, que se revela como a Divina Fonte de misericórdia, comunicando luz para quem em Sua Palavra confia.
Jesus, enquanto presente na comunidade é a luz do mundo, missão que depois será confiada aos discípulos, com a Sua Ressurreição (Mt 5,14).
Diante do sinal temos duas posturas distintas: cegueira e visão. Da parte dos fariseus, a cegueira. Diante do cego de nascença, a visão recuperada, alcançada porque acreditou no Senhor, confessou a fé em Jesus como o Messias esperado.
Uma passagem do Evangelho em que se revela a cegueira dos fariseus e o alto grau de visão daquele que tinha sido curado; visão alcançada por etapas e contra todas as dificuldades, indiferença da parte de alguns, perseguição e expulsão da comunidade da parte dos fariseus.
Os fariseus presos à rigidez e à frieza da prática da Lei, cegos pelos esquemas mentais legalistas, se recusaram a admitir que, realmente, foi Jesus quem restituiu a visão ao cego de nascença.
Era impossível reconhecer a ação libertadora de Jesus, sobretudo porque para eles as Escrituras afirmavam que o Messias, quando viesse, curaria todos os cegos.
Como acreditar em alguém que viola a Lei do sábado, o dia do descanso? Como realizar sinais em nome de Deus, ainda mais dia de sábado, sem fidelidade às leis religiosas do povo?
O cego de nascença, de outro lado, tem a graça da visão física e a visão mais sublime, ou seja, a visão interior, que consiste na visão da fé.
Momento expressivo desta passagem do Evangelho: a confissão de fé do cego curado pelo Senhor: −“Eu creio, Senhor!”, e se prostrou diante d’Ele em adoração.
Duas posturas tão diferentes que questionam também nossa postura. Podemos ficar numa condição de cegueira absoluta, envoltos nas trevas do pecado, ou recuperar a visão a partir da ação de Jesus em nossa vida, confiando plenamente em Sua Palavra, que nos faz verdadeiramente livres e luminosos; fazendo crepitar mais forte a chama da fé, que um dia, em nosso Batismo, foi acesa no Círio Pascal, sinal do Cristo Ressuscitado, a Luz do mundo, que resplandeceu na escuridão da noite, testemunhada na madrugada da Ressurreição.
Concluo com a Oração depois da Comunhão feita na Missa no quarto Domingo da Quaresma (Ano A):
“Ó Deus, luz de todo ser humano que vem a este mundo,
iluminai nossos corações com o esplendor da Vossa graça,
para pensarmos sempre o que Vos agrada
e amar-Vos de todo o coração.
Por Cristo, nosso Senhor. Amém!”
Dom Otacilio F. Lacerda
Assim como o cego de nascença, também sejamos curados: curados de nossa cegueira interior, a mais empobrecedora de todas, a cegueira espiritual, tenhamos o coração iluminado para ver como Deus vê, pois Ele vê o coração e não as aparências (1Sm 16,7)
Abri, Senhor, os olhos de nossa alma e os ouvidos de nosso coração
A Liturgia das Horas nos apresenta, na terceira Quarta-feira da Quaresma, uma preciosa reflexão do Bispo São Teófilo de Antioquia (séc. II) extraída do seu Livro “A Autólico”.
“Se me disserem: ‘Mostra-me o teu Deus’, dir-te-ei: ‘Mostra-me o homem que és e eu te mostrarei o meu Deus’. Mostra, portanto, como veem os olhos de tua mente e como ouvem os ouvidos de teu coração.
Os que veem com os olhos do corpo, percebem o que se passa nesta vida terrena, e observam as diferenças entre a luz e as trevas, o branco e o preto, o feio e o belo, o disforme e o formoso, o que tem proporções e o que é sem medida, o que tem partes a mais e o que é incompleto; o mesmo se pode dizer no que se refere ao sentido do ouvido: sons agudos, graves ou harmoniosos. Assim também acontece com os ouvidos do coração e com os olhos da alma, no que diz respeito à visão de Deus.
Na verdade, Deus é visível para aqueles que são capazes de vê-lo, porque mantêm abertos os olhos da alma. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não veem a luz do sol. E se os cegos não veem, não é porque a luz do sol deixou de brilhar; a si mesmos e a seus olhos é que devem atribuir a falta de visão. É o que ocorre contigo: tens os olhos da alma velados pelos teus pecados e tuas más ações.
O homem deve ter a alma pura, qual um espelho reluzente. Quando o espelho está embaçado, o homem não pode ver nele o seu rosto; assim também, quando há pecado no homem, não lhe é possível ver a Deus.
Mas, se quiseres, podes ficar curado. Confia-te ao médico e ele abrirá os olhos de tua alma e de teu coração. Quem é este médico? É Deus, que pelo Seu Verbo e Sabedoria dá vida e saúde a todas as coisas.
Foi por Seu Verbo e Sabedoria que Deus criou o universo: A Palavra do Senhor criou os céus, e o sopro de Seus lábios, as estrelas (Sl 32,6). Sua Sabedoria é infinita. Com a Sua Sabedoria, Deus fundou a terra; com a Sua inteligência, consolidou os céus; com sua ciência foram cavados os abismos e as nuvens derramaram o orvalho.
Se compreenderes tudo isto, ó homem, se a tua vida for santa, pura e justa, poderás ver a Deus. Se deres preferência em teu coração à fé e ao temor de Deus, então compreenderás.
Quando te libertares da condição mortal e te revestires da imortalidade, então serás digno de ver a Deus. Sim, Deus ressuscitará o teu corpo, tornando-o imortal como a tua alma; e então, feito imortal, tu verás o que é Imortal, se agora acreditares n’Ele”.
A Quaresma consiste num tempo de penitência, em contínuo esforço de conversão, acompanhado das práticas quaresmais, indispensáveis e evangélicas, (Oração, jejum e esmola).
Esta reflexão nos ajuda a buscar a purificação do nosso coração, porque, bem disse o Senhor no Sermão da Montanha:
“Somente os puros de coração contemplarão a Deus.”
Dom Otacilio F. Lacerda