Ortodoxia e ortopatia

 

A sociedade contemporânea, já tão ferida por graves descompassos, não pode confundir visíveis situações patológicas com o bem. No conjunto dessas situações, estão aqueles que se acham defensores da “verdade absoluta” e, por isso mesmo, distanciam-se da Verdade, que é Deus Misericordioso. Assim se configuram os radicalismos e as polarizações, o ataque a pessoas e a instituições, os grupos que se acham no direito de tirar a vida do outro em nome daquilo em que acreditam. Mentes doentias, que necessitam recuperar a sanidade, a inteireza moral e afetiva.

O surgimento de dinâmicas messiânicas perigosas, agrupamentos que se percebem como “donos da verdade” e com o direito de julgar os outros em nome da fé, mesmo sem a mínima competência, revela uma urgência: investimentos humanísticos e espirituais para que todos se compreendam como irmãos uns dos outros, filhos e filhas de Deus. Essa compreensão é necessária para que cada pessoa faça a diferença, agindo a partir de valores ético-morais coerentes com o Evangelho de Jesus Cristo.  A sociedade não pode permanecer indiferente diante de um progressivo e generalizado adoecimento que está corroendo a condição humana.

É preocupante o desvario verificado nos mais variados segmentos sociais, institucionais e, também, no contexto religioso. Situações que merecem ser conhecidas em suas complexidades, a partir da contribuição de diferentes campos do saber – antropologia, filosofia, sociologia, teologia e tantos outros. Avaliações a partir de referências à ortodoxia e à ortopatia são caminho promissor para conhecer e mudar essa realidade. O conjunto de sentimentos e paixões (pathos) é elemento fundante e determinante da condição humana – saudável ou doentia. Tem uma fortíssima influência na dimensão racional. Pode gerar, assim, desvios de conduta e doenças, a partir tanto da dinâmica da rigidez quanto do laxismo.

O conceito de ortodoxia, diferentemente do que pensa o senso comum, não serve apenas para denotar posturas enrijecidas. Define a desafiadora interpretação correta de uma verdade, como crença ou dogma. O funcionamento correto da capacidade humana de conhecer a realidade é fundamental para qualificar as relações interpessoais e também para o desenvolvimento de instituições, em estreita fidelidade à sua natureza e missão. A ortodoxia requer processos cognitivos que naveguem nas águas do sentido da verdade, sem manipulações ou adaptações que se tornem, consequentemente, negação de valores e princípios. Mas essa fidelidade não pode significar “estreitar a verdade” a partir de mentalidades e posturas. Eis, pois, a importância do que se define por ortopatia:  o cultivo correto de sentimentos, de modo coerente com a espiritualidade, a transcendência e a fé.

Uma permanente urgência é investir em ortodoxia e ortopatia, para evitar confusões, os enrijecimentos que levam pessoas a fazerem justiça com as próprias mãos, resultado de descompassos afetivos e cognitivos. Esses desajustes adoecem pessoas e a própria sociedade. São obstáculos para ações solidárias e impedem que cada pessoa se reconheça como filho de Deus, o Pai de todos. Não há mudança social sem investimentos no desenvolvimento humano-afetivo. As contribuições da política são indispensáveis, as indicações sociais têm seu lugar e o horizonte cultural influencia determinantemente esse desenvolvimento. Mas há algo que é fundamental: a experiência espiritual – que não pode ser confundida com fanatismo ou mera religiosidade. Trata-se da experiência mística de buscar Deus, que ilumina a condição humana.

Para a fé cristã, a qualificada espiritualidade é a experiência do encontro pessoal com Jesus, sentido forte do tempo do Advento, preparação para o Natal. Um antídoto para a ortodoxia que vira rigidez e instrumento de condenações e demonização dos outros, algo incompatível com a requerida ortopatia. Só a autêntica espiritualidade pode livrar a contemporaneidade dos fundamentalismos e polarizações, dos novos totalitarismos e ódios devastadores. Somente a vivência de uma qualificada mística, coerente com o Evangelho, pode evitar que a ortodoxia seja instrumento para criar divisões, substituindo a ortopatia por graves delinquências. Sejam todos coerentes com os ensinamentos de Cristo, que vem ao encontro da humanidade, como seu Salvador e Redentor, para vivenciarem a espiritualidade de modo autêntico e fecundo.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

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