Felizes os que obedecem ao Senhor e andam nos seus caminhos.
A ALEGRIA DO AMOR que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Apesar dos sinais de crise no matrimônio, o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens, isto incentiva a Igreja. O caminho feito para o sínodo dos bispos (pesquisas realizadas) permitiu analisar a situação das famílias no mundo atual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimônio e da família. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. Recordando que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais (do Magistério da Igreja). Em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais.
CAPÍTULO I –À LUZ DA PALAVRA
A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares. As duas casas de que fala Jesus, construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27), representam muitas situações familiares. Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias núpcias quer judaica quer cristã:
«Felizes os que obedecem ao Senhor e andam nos seus caminhos. Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente. A tua esposa será como videira fecunda na intimidade do teu lar; os teus filhos serão como rebentos de oliveira ao redor da tua mesa. Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião! Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida, e chegues a ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4; Gn 2, 24). A capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem as «pedras vivas» da família (cf. 1Ped 2, 5). A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos filhos. (Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) da sua missão educativa (cf. Pr 3, 11-12;6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17). O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida.
Há um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às numerosas dificuldades familiares que registra a história de Tobias ou a confissão amarga de Jó abandonado: Deus «afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (…)A minha mulher sente repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (Jó 19, 13.17).
O próprio Jesus nasce numa família modesta, que à pressa tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc 5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44), ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc 7, 11-15); atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação rural (cf. Mc 9, 17-27). Encontra-Se com publicanos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura (cf. Lc 15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos inexplicáveis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf. Mc 12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa que se vive numas bodas pela falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos convidados a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece também o pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre (cf. Lc 15, 8-10).
Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus «enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4).
O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade e fecundidade: «Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e chegues a ver os filhos dos teus filhos» (Sl 128/127, 5-6; Pr31, 10-31; At 18, 3; 1Cor 4, 12; 9, 12).Paulo estava tão convencido da necessidade do trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades: «Se alguém não quer trabalhar, também não coma» (2Ts3,10; cf. 1Ts 4, 11).
Dito isto, compreende-se que o desemprego e a precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça da localidade (cf. Mt 20, 1-16).
Também não podemos esquecer a degeneração que o pecado introduz na sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como conseqüência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo (Gn 3, 17-19) e os desequilíbrios econômicos e sociais, contra os quais se levanta, abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (1Rs 21) até chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça (Lc 12, 13-21; 16,1-31).
Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs, sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros(Mt 22, 39;Jo 13, 34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão (Jo 8, 1-11).
No horizonte do amor, destaca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes tempos de relações frenéticas e superficiais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e denso Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos (cf. Ex 4, 22; Is 49, 15; Sl 27/26, 10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é expressa com traços de amor paterno e materno. Por isso canta o Salmista: «Estou sossegado e tranqüilo, como criança saciada ao colo da mãe» (Sl 131/130, 2; Os 11, 1.3-4).
A família é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito. Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes, experiência que ainda hoje se repete tragicamente em muitas famílias de refugiados descartados e inermes. No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecer a mensagem de Deus na história familiar.
Que família bíblica você mais aprecia? Qual é a que diz mais, a si e à sua família?